Desde o ano de 1938, uma estranha
ave/criatura tem sido avistada sobrevoando a cidade! A data remonta à
inauguração da igreja do Carmo que foi construída em estilo neo-gótico.
Inspirada na igreja gótica de Burgos (Espanha) o Carmo é uma obra da arte
arquitetônica que ao longo dos anos ficou espremida entre prédios e estruturas
remanescentes de um florescente passado eclético e neoclássico (que estava no
auge a cerca de um século atrás) e que hoje são ruínas decadentes, cercadas
pela falta de estilo arquitetônico que no presente se resume a um amontoar de
tijolos e a um caiar de cal, num conjunto de aberrações estéticas. O Carmo,
assim como outras igrejas de inspiração gótica, teve suas gárgulas para lembrar
aos fiéis que o diabo pode estar sempre presente no cotidiano.
Não pensem que as gárgulas não convivem com
a humanidade a milhares de anos! Antes da criação do estilo gótico no século
XII e do uso das gárgulas nos beirais dos telhados para escoamento das águas
das chuvas e como símbolo de proteção contra as legiões diabólicas, as gárgulas
viviam nas florestas junto com inúmeros outros seres resultado da evolução
natural e surgidos num passado distante. Podem ser uma adaptação miniaturizada
dos extintos pterodáctilos, sendo
tudo especulação paleontológica. As gárgulas podem viver por mais de 300 anos e
a que aqui chegou em 1938 passou a imitar a posição das 5 originais em
concreto. Era ainda jovem quando voou da Catedral de Burgos até um navio
espanhol que cruzou o Oceano Atlântico até se deparar com Igreja do Carmo. Seu
objetivo era Buenos Aires, mas em sua escala em Rio Grande, ao se deparar com a
familiar Igreja do Carmo ela acabou se apaixonando pelo belíssimo prédio e pela
visão das águas que cercam a cidade do Rio Grande. Os antepassados desta
gárgula remontavam ao ano de celebração da primeira missa na catedral de Burgos
em 1231.
Tão estranha migração faz parte da
natureza destes animais: passavam a maior parte de sua vida em regiões
distantes e sem outros de sua espécie por perto, pois os seus companheiros eram
cheios de simbologias cristãs, sendo de fato eram feitos de concreto e não de
carne e sangue. Elas absorvem a solidão de olhar do alto os seres humanos, que
pareciam formigas cumprindo sua labuta diária de sobrevivência em meio a
situações tragicômicas e outras vezes vivendo na dualidade opulência e miséria
material/existencial. Observava atentamente os seres humanos olharem para as
torres das catedrais implorando misericórdia divina para seus pecados e pedindo
para ser prolongado o seu tempo de existência terreno.
É um animal bem-vindo, pois se
alimenta dos enormes ratos que imperam nas madrugadas junto às docas do cais.
Na Praça Tamandaré carrega em suas patas ratazanas avantajada que já tiveram
extensiva prole. Já foi avistada em madrugadas de lua cheia carregando boêmios
que tropeçavam pelas ruas desertas depois de noites passadas em butecos e
prostíbulos. A gárgula sobrevoava o Cais do Porto Velho, cruzava a Lagoa dos
Patos e pousava no telhado do casarão da Ilha da Pólvora para devorar sua
vítima. Nenhuma maldade, sadismo ou satanismo, apenas a fome visceral das
madrugadas solitárias de estômago vazio! No local mais isolado desta pequena
ilha ela lançava o resto de sua refeição formando um cemitério sem lápides e
sem identificação fadado a permanecer ignorado pela dinâmica natural dos
marismas.
*PS. Durante o dia fotografei as seis
gárgulas do Carmo e na fotografia que tirei na madrugada havia apenas
cinco! (crônica tirada do livro
Histórias Irreais do Rio Grande).
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