Porto do Rio Grande em 1908

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terça-feira, 11 de julho de 2017

A CIÊNCIA HISTÓRICA

             Há 20 anos atrás, no ano de 1997, defendi minha tese de Doutorado em História do Brasil na PUCRS. Quando da publicação da tese (em formato de livro) o orientador Arno Alvarez Kern escreveu o prefácio que permanece atual. Duas décadas é uma duração temporal que permitiria mudanças no cenário historiográfico o que de fato ocorreu num ritmo avassalador de defesas de mestrado e doutorado em História em várias universidades brasileiras. Mestres e Doutores, nas mais diferentes áreas do conhecimento das Ciências, já somam 1 milhão de diplomados no Brasil! Porém, a história feita por historiadores a partir de metodologias rigorosas ainda tem sido, por vezes, profanada em descompasso com o conhecimento científico. Reproduzo o prefácio do prof. Arno Kern para evidenciar o verdadeiro espírito científico que deve conduzir a ciência histórica.

            “As análises historiográficas realizadas até hoje no Brasil, com raras exceções, têm sido pouco abrangentes e insatisfatórias do ponto de vista da ciência histórica. Este fato se deve principalmente a não terem sido sempre realizadas por historiadores. Quando escritas por literatos, elas se caracterizaram sobretudo por comentários relativos a estilo, forma e estética, sem nenhuma inserção no contexto da discussão científica da história. Ao serem escritas segundo uma ótica filosófica, elas sempre se apresentam como teorizações sobre teorias, sem a necessária relação com o contexto histórico, nem o necessário contraste com as evidências empíricas. Mesmo alguns trabalhos escritos por historiadores terminam por centrar sua atenção nas principais correntes historiográficas ou sobre a epistemologia da ciência histórica, ao longo das últimas décadas.
         A pesquisa historiográfica do Professor Luiz Henrique Torres, da Universidade Federal do Rio Grande, se estrutura segundo um outro ponto de partida e uma abordagem original. Trata-se da tese de doutorado de um historiador perfeitamente imbuído das atuais tendências e orientações da historiografia contemporânea. Em outras palavras, isto significa um olhar crítico sobre as representações coletivas de um significativo grupo de historiadores sul-rio-grandenses que, ao longo dos séculos 19 e 20, buscou posicionar-se sobre o lugar que as Missões Jesuítico-Guaranis ocuparam no processo histórico formador de nossa sociedade.
            A análise do autor é sempre pertinente e adequada, voltando-se para a diversidade dos modos de representação histórica, contextualizando-os numa dupla ótica espaço-temporal. Como a temática do trabalho precisa muito bem, trata-se da análise crítica das representações coletivas desta pequena comunidade de historiadores gaúchos – representantes de Clio entre nós – a respeito do papel histórico dos jesuítas e de guaranis em nosso passado.
            Objetiva-se analisar a História e o discurso produzido ao longo dos séculos 19 e 20. Trata-se de um discurso escrito que se pretendia verdadeiro e definitivo. Entretanto, como nos mostra muito bem a análise de Torres, estes historiadores foram apenas homens que produziram páginas de um discurso não apenas sobre o passado, mas sobre o seu passado. As análises desenvolvidas pelo autor nos evidenciam que a historiografia gaúcha produzida no passado é um testemunho excepcional que temos sobre o nosso passado. Principalmente quando nos damos conta de que esta produção historiográfica se desvela naquilo que tem de mitos e de ambigüidades. Este é um estudo amplo e detalhado, uma análise metódica mas contundente sobre o tipo de historiografia que se produziu ao longo de dois séculos. Esta é a realidade que esta pesquisa deliberadamente tenta nos fazer compreender, desvelando um assunto pouco familiar mesmo aos historiadores atuais. Tanto no Brasil como em outros países, a historiografia é um gênero ainda muito negligenciado.
            O trabalho de pesquisa realizado pelo Professor Luiz Henrique Torres, entretanto, nos permite constatar uma série de problemas relacionados ao fazer história, como é o caso flagrante da subjetividade dos historiadores e as limitações na utilização das fontes documentais. Torna-se mesmo um pouco constrangedor, para alguns de nós, encontrar na leitura destes discursos que se pretendem históricos tantos devaneios, tantas lendas e tantas ilusões. Percebemos então que os historiadores do passado não conseguiram descartar-se dos frutos do imaginário coletivo de sua época. Em algumas obras podemos perceber as interpretações racistas de Gobineau ou as etapas comtianas da história. Em quase todas, encontramos os preconceitos da sociedade local apresentados como explicações definitivas da história.
            Entretanto, este cuidadoso trabalho de pesquisa nos evidencia que estes mitos, inseridos nos discursos historiográficos do passado, são fontes primárias de extremo valor para a compreensão de nossos historiadores do passado. A origem destes mitos se encontra nos séculos 17 e 18, pois eles nasceram no momento mesmo em que os indígenas guaranis e os missionários jesuítas viviam a sua história. Já a partir desta época estes mitos começaram a ser habilmente historiados, reproduzindo-se até recentemente. Na análise de um historiador contemporâneo como Luiz Henrique Torres, a produção historiográfica tornava-se, assim, fonte documental primária.
            A historiografia contemporânea tem se voltado muitas vezes para o estudo dos mitos, das antigas ficções geradas pelas sociedades do passado e portanto dos seus aspectos simbólicos. No mesmo momento em que isto acontece, poderíamos pensar que é por puro acaso que descobrimos o quanto há de ficção e de mitos em nossa própria história. Isto não é verdade, como não é verdadeiro pensar que a objetividade da História é um sonho impossível. Não podemos também concluir que a ciência da história está morta ou senil, não apenas esquartejada em migalhas mas igualmente transformada em uma história-ficção.
            Ao longo das últimas décadas, a ciência da História continuou seu caminho entre nós, agora em um contexto renovado pela formação de recursos humanos voltados para a profissão de historiador, nos cursos de pós-graduação.
            O discurso dos historiadores ganhou em autenticidade documental, em densidade teórica, em volume de produção e em variedade temática. A imagem descrita pelos historiadores atuais tende a ganhar em nitidez, a partir de um racionalismo crítico mais objetivo e explícito. Ganhou igualmente uma profundidade de campo muito grande, pois acrescentamos às nossas análises o documento arqueológico, remontando a nossa história local ao final da última glaciação.
            Mesmo as brumas e as névoas dos preconceitos e das falsas interpretações, que ocultaram muitas das realidades históricas de nosso passado colonial, relativas às Missões Jesuítico-Guaranis, foram dissipadas. Na presente tese, elas não foram apenas recuperadas do ponto de vista metodológico, mas igualmente analisadas criticamente, tornando-se assim um tema historiográfico.
            A nossa historiografia passada é rica em versões, formadas a partir de visões singulares e em memórias diferentes. Este caminho de dois séculos foi balizado por acertos e erros. Os testemunhos documentais aqui analisados nos permitem fazer duas observações fundamentais, que vão além das considerações anteriores. Em primeiro lugar, o discurso histórico não apenas nos revela uma realidade do passado. Ele mesmo é um importante testemunho das diversas facetas das realidades coletivas do passado registradas por este singular grupo formado por historiadores. Finalmente, tanto o homem do passado como o atual demonstram carregar consigo uma necessidade imperiosa de história. A mesma história que os projeta através dos tempos” (Prof. Dr. Arno Alvarez Kern, 1997).


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