Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 10 de fevereiro de 2024

CASTELO DE PEDRAS ALTAS

 

https://www.google.com.br/maps/place/Castelo+de+Pedras+Altas+-+Assis+Brasil. 


A escritora Júlia Lopes de Almeida visitou o Castelo de Pedras Altas no mês de junho de 1918. O relato de sua estadia foi publicado no livro Jornadas no Meu País, editado pela Ed. Francisco Alves em 1920.  

“Muita gente terá inveja de mim, quando souber que já estive no castelo de Assis Brasil, em Pedras Altas. E terá razão. Rodeado por altas árvores e lindos prados da sua granja modelar, com as suas torres de pedra em ameias descortinando largos horizontes, esta linda residência senhorial, edificada e planejada pelo seu proprietário, com tamanho gosto e tanto carinho, traz-me a lembrança doces recantos da Europa, visões suaves do campo inglês ou da verde Irlanda. 

E esta impressão do exterior acentua-se dentro da sala de mobiliário severo, onde há quadros originais pelas paredes e arde o lume no braseiro de um fogão ladeado de poltronas, em que a família reunida conversa entre si, frequentemente em inglês. Lá fora o vento frigidíssimo vergasta a doce laranjeira carregada de frutas e plantada mesmo rente aos degraus da entrada principal. Nesta casa amiga de tradições, a querida árvore que lhe está à porta e de que é proibido tocar-se sequer num fruto, é a representação de um caso histórico da propriedade, e como que um doce símbolo da sua felicidade doméstica. E, como em parte nenhuma do Rio Grande, encontro neste lar o amor pelas coisas, os usos e os costumes regionais. E' junto ao fogão a europeia da sua sala, que eu tomo pela primeira vez mate chimarrão na respectiva cuia com bomba de prata, conforme o uso tradicional da terra, e que vejo lindas mãos femininas entrançarem com destreza longos fios de uma gramínea para me mostrarem os vários modelos típicos do enastramento dos chicotes e dos arreios gaúchos, feitos com finas tiras de couro. 

Durante o dia passeia-se, à noite conversa-se no abrigo quentinho da sala, enquanto uma das meninas canta e a dona da casa preside ao serão. O chefe da família está ausente, passando uma temporada em uma das suas estâncias vizinhas à fronteira. Tem de dividir o seu tempo pelas suas terras e divide-o com todo o rigor, porque a sua atividade física para o trabalho só pôde ser igualada a sua capacidade intelectual. Com propriedades importantes em diferentes pontos do Estado, e dirigindo todas de modo superior, ele tem de repartir por elas a sua atenção, achando ainda modo de fazer, quando de passagem entre umas e outras, na cidade que lhe fique em caminho, conferências que elucidem e instruam o povo. Não cessa assim este homem de estudo e de gabinete, que por tantos anos foi um dos nossos mais brilhantes ministros no estrangeiro, e que é um dos nossos estadistas de mais larga visão, de lançar nos campos da lavoura e nos da inteligência a semente provida da boa cultura, com os exemplos das suas observações práticas e das suas idealizações. Diz-me alguém que o vê frequentemente em acidentais encontros de caminho de ferro, todo vestido de. linho azul que lhe faz sobressair o moreno da face e a alvura da cabeleira, com perneiras de couro amarelo até os joelhos e largo chapéu de feltro, que, sempre que o ouve em momentâneas palestras entre uma ou outra estação da linha, abre bem os ouvidos na certeza de colher nesses momentos de acaso, qualquer cousa de utilidade para o seu pensamento ou para o seu trabalho. Considera-o por isso um verdadeiro semeador de benefícios. 

Na granja das Pedras Altas, não se conhece a preguiça. Informada de que as duas filhas mais novas dos donos da casa fazem madrugada para tratarem, elas próprias, dos terneiros das suas vacas Jersey, saio do meu quarto mal vejo clarear o dia e vou esperá-las no jardim. Pouco depois ei-las que chegam, com a sua faquinha gaúcha á cinta e o redondo chapéu de feltro a sombrear-lhes os rostos juvenis. Acompanho-as na sua tarefa de boas lavradeiras, vendo-as mugir as vacas, desnatar o leite, preparar a nata para fabricação da manteiga, abrir o curral aos bezerros e levá-los para o pasto tangendo no ar uma varinha leve e assobiando de vez em quando ao gado experto, mas submisso. 

Quando escrevi o meu "Correio da Roça", e procurei nele insuflar na alma das minhas patrícias que vivem no campo esse amor pelas cousas e os seres que nele constituem toda a sua fortuna e todo o seu encanto, disse um crítico que as personagens femininas desse livro seriam interessantes, mas eram absolutamente inverossímeis, em vista dos nossos hábitos e da nossa educação. Em face deste exemplo vivo, que venho encontrar no Rio Grande, numa família muito mais ilustrada do que a que figura no meu livro, e de outras tradições literárias, sinto que não errei ao dar às minhas criaturas espirituais certa iniciativa e independência, como possíveis de florescerem entre nós. Ainda assim, quanto deveriam elas invejar a estas gentilíssimas gaúchas. E como a nossa terra precisa destas devoções! Sim, mais do que de nenhumas outras. 

Soltos, os terneiros no pasto damos algumas voltas pelas aléas do parque onde encontro, a passear lindos cavalos, peões de gorro escarlate e lenço da mesma cor ao pescoço. E' o distintivo dos empregados da casa, a nota rútila da manhã de névoa, tanto às vezes um ponto insignificante dá a quadros importantíssimos, valores curiosos. Tenho a impressão de que nesta granja modelo não há nada em que se não tenha pensado mesmo antes da sua fundação. As cousas têm a feição que a vontade que as executou quis que elas tivessem desde a primitiva. Não há aproveitamentos, há criações. Tudo foi determinado pela vontade de um homem de gosto. Deixo Pedras Altas com saudade”.

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