Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 8 de junho de 2020

ISABELLE E AS MULHERES EM PORTO ALEGRE

Porto Alegre, Rua da Praia em 1860. 

    O comerciante e naturalista francês Arsène Isabele realizou viagens entre o Rio Grande do Sul e o Rio da Prata entre 1830-34. Em 20 de março de 1834 chegou a Porto Alegre e fez uma série de observações da cidade. Entre elas, a passagem abaixo, em que relata criticamente a reclusão que era imposta as mulheres por seus pais ou maridos. 

     "O forasteiro sente-se só nessa rua, porque não pode, de maneira alguma, apesar do seu alto grau de filantropia, sentir-se em sociedade no meio de negros embrutecidos, que circulam misturados com os bodes e cabras de que as ruas estão cheias. Ele se sente, portanto, só consigo mesmo, vendo em torno tantas barricadas. Mas, infelizmente, não é assim: no momento em que segue mais descuidado, uma imensa rótula se abre para deixar passar uma risada estúpida, e fecha-se de novo, rapidamente, como se sofresse de uma doença contagiosa. E não adianta zangar-se nem vociferar, porque o baço se manifesta facilmente nesse ditoso clima… O melhor é passar depressa e contentar-se em maldizer, secretamente, a barbárie dos portugueses, que, encerrando as suas mulheres nessa espécie de haréns, as tornam tão ignorantes, tão ridículas, que a simples vista de um estrangeiro é para elas uma fantasmagoria, uma sombrinha chinesa. Entretanto, era esse o aspecto do Rio de Janeiro, antes da chegada de dom Pedro, e é ainda o de uma infinidade de pequenas cidades do interior.

     É preciso dizer que, em Porto Alegre, o viajante já está menos exposto a essas surpresas desagradáveis, apesar de os portugueses e brasileiros não serem, ali, menos ciumentos do que no Rio, na Bahia, em Pernambuco ou em outros lugares. Apenas, seu ciúme não se manifesta de uma maneira tão chocante. A vizinhança dos castelhanos (é assim que designam os habitantes das províncias do Prata) contribui para modificar bastante seus costumes otomanos. Não está longe o tempo em que as mulheres dessa interessante parte do Brasil obterão as mesmas liberdades de que gozam as montevideanas e as buenairenses. Mas essa época feliz não chegou ainda e, enquanto esperam, continuarão a suportar o jugo dos seus enfadonhos maridos, ou melhor, dos seus tiranos domésticos, espécies de Argos vigilantes que, não contentes de mantê-las na mais vergonhosa ignorância, ainda as encerram num aposento afastado, como escravas do himeneu… É muito difícil penetrar nesse santuário misterioso: a severidade dos maridos só diminui um pouco quando o estrangeiro, depois de ter vivido algum tempo na cidade, prova, por sua boa conduta, que pode ser apresentado sem perigo à família do brasileiro, ao qual veio recomendado, ou que conheceu acidentalmente. Então, o santuário lhe é aberto, mas não deve usar esse favor insigne, senão com a maior reserva e a maior circunspeção… Desgraça e catástrofe para o que trair a confiança de um Argos brasileiro… Uma sova de pau será o mínimo da pena imposta por esse abuso.

    O caráter sombrio e excessivamente ciumento dos brasileiros contribui, assim, ao isolamento, no qual as suas mulheres parecem estar condenadas a viver ainda algum tempo. Conheci mulheres joviais, bonitas, amáveis… e até graciosas, que não exigiriam mais do que ir às vezes dar um passeio, freqüentar a sociedade, e enfeitar, animar com sua presença as reuniões masculinas, que eu achava tristes, insípidas, para não dizer intoleráveis. Ó, Voltaire, Ó, Légouvé, Ó, Madame de Staël, por que vossas eloqüentes respostas às sátiras, tão injustas quanto mordentes, dos Juvenal e dos Boileau não poderão ser lidas por todas as brasileiras? Adquiririam, ao menos, um justo sentimento de amor-próprio e de nobre dignidade, que lhes revelaria o que elas valem ou o que podem valer, e suas bocas não ficariam mudas, quando os pesados sofistas do gótico Portugal pretendessem inculcar-lhes princípios reprovados pelo mundo civilizado". In: ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-34).  Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.

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