Cena corriqueira na Região Platina e com semelhanças em relação à descrição de João Roscio. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
O engenheiro
militar Francisco João Roscio, nascido na Ilha da Madeira, prestou relevantes
serviços administrativos e cartográficos à Coroa Portuguesa no século 18. Ele
também produziu um escrito muito elucidativo da sociedade rio-grandense em
formação na transição entre a ocupação espanhola e a retomada portuguesa no Rio
Grande do Sul. O título do manuscrito existente na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro é Compêndio Noticioso do
Continente do Rio Grande de S. Pedro..., datado de 1781.
Roscio
refere-se a difícil vida no sul do Brasil naquela época e relata praticas
cotidianas ligadas ao meio rural, especialmente, as atividades da pecuária.
Neste cenário surge referência ao caminho da praia ou Caminho da Costa do Mar
que até algumas décadas atrás, inclusive os ônibus utilizavam para a ligação
terrestre entre Rio Grande e o Chuí/Santa Vitória do Palmar. Também é apresentada
uma definição para a palavra até hoje popular ao gaúcho que é “guasca”.
Uma volta ao
tempo das grandes carroças que viravam verdadeiras casas móveis precárias ou
ausentes de qualquer luxo. Tempos antigos dos tropeiros, gaudérios e
changadores; dos conflitos entre luso-brasileiros e castelhanos; dos animais
selvagens atacando as caravanas e dos rodeios. Era o tempo de uma modalidade de
civilização, fundada na pecuária e na guerra, que marcaria profundamente a
história do Rio Grande do Sul.
AS CARAVANAS DO SUL
“O modo com
que esta gente e povoadores costumam viver e habitar estas terras é bastante
rústico e agreste. As casas são umas pobres cabanas sem cômodos nem agasalhos.
Em muitas delas serve de porta um couro cru de boi pendurado como cortina. Os
mantimentos de que geralmente se servem são a carne de vacas e o leite sem
exceção de quaresma ou dia de jejum. O seu tráfico é com bois e cavalos de que
tiram os maiores interesses tanto para os particulares como para os direitos reais,
porque pagam o quinto destes animais e couros. As terras fechadas ou terminadas
entre as Raias declaradas nesta relação todas estão povoadas mas todas
desertas. Cada morador não se contenta com poucas léguas de terra entendendo
que todas lhe serão precisas ainda que só se servem de uma insignificante parte
junto à sua cabana e por isso ainda que toda a campanha está deserta todos os
campos estão dados e tem senhorio. O comércio se faz ou pela barra do Rio
Grande em embarcações competentes ou por terra para a Vila da Laguna onde
embarcam os gêneros de exportação e desembarcam outros de troca ou pequenas
mercadorias.
O transporte
por terra se faz em carretas a castelhano que são uns volumes monstruosos e mal
fabricados que ocupam uma grande extensão em marcha. As suas rodas,
o menos que tem são 9 palmos de diâmetro feitas de raios toscamente cortados ao
machado. Os seus cubos são uns troncos de árvore, cortados em três palmos de
comprido e 2 e meio de grosso ou de diâmetro. Não são ferradas nem cavilhadas mas
só apertadas à força da massa. Os eixos são uns braços de madeira toscos e
delgados a proporção da máquina, e por isso se destroem com facilidade ou
quebrando ou tomando fogo com a fricção. É preciso levar algum de sobressalente
ou ir cortando onde se encontrem para suprimento. Os leitos das carretas tem 15 a 16 palmos; são
acompanhados pelos lados com uma parede alta de palha com teto circular coberto
de couro cru de vaca de forma que fica uma cabana ou casa móvel. As testas são
cobertas com couros pendurados. A lotação de peso que costuma carregar cada uma
destas carretas de molhado são 4 pipas que se transportam em barris grandes que
possam acomodar-se e descarregar-se nas passagens dos rios e concertos do eixo:
o qual não tem peso nem chaveiro no leito da carreta e se segura ao seu
engradamento com correias de couro em grande quantidade e muitas voltas e laçadas;
cujas correias chamam guascas. São
cortadas em forma circular e por isso de couro inteiro se tira uma só e longa
correia ou guasca cortada das extremidades sempre a roda a acabar no centro em
um ponto. E de seco são 125 arrobas mas contando as taras provimentos para a
jornada, camas, caixas de carpintaria que trazem para as precisões, outras
miudezas e gente de transporte que também carregam, chegam muitas vezes a levar
mais de 300 arrobas, o que concorre para uma morosa jornada. Em caminho plano e
duro são levados por seis juntas de bois, tanto cheias como vazias. Mas em
qualquer pequena rampa ainda que seja doce que encontrem ou em areia branda,
são precisas de dez a doze juntas e muita fadiga e trabalho para se vencer, não
obstante serem bois muito fortes e vigorosos.
O
caminho da Costa do Mar é pelas praias onde a areia molhada e aplanada com as
ondas se une e endurece tanto como o mais duro terreno: por serem muito finas e
próprias para isso. Cada carreta com seus bois ocupam mais de 100 palmos de
estrada. Nenhuma marcha com menos de 30 ou 40 bois porque, os que trabalham em
um dia não ficam capazes de trabalhar no seguinte, e, é preciso reservar como
também descontar alguns que arrebentam no trabalho, outros que se matam para
carnear e alguns que alguma vez carregam as onças, apesar de todas as
vigilâncias. Na lança da carreta anda pendurado um pau ou descanso para
consolação e alívio dos bois do coice que sem este descanso ou suporte, seria
impraticável suportar qualquer inclinação de tão grande peso. As marchas se
fazem das 9 horas da manhã até às 3 ou 4 da tarde, a grande trote ou largo
passo, até se encontrar sítio de pasto para os animais e onde se cuida em todos
os indivíduos o resto do dia.
Os peões e
carreteiros fazem sentinela aos animais de noite cercando-os com fogos para
afugentar as onças, até que de manhã os ajuntam e laçam ao pé das carretas para
os forçarem ao jugo; porque estes bois ou são bravos ou com fraca diferença
(...) O modo de criação dos bois e cavalos também é tal qual permite a
natureza. Deixam-se crescer e ter produção nos campos sem mais cuidado que o de
os perseguir todas as tardes a longo galope até os juntarem no meio de um
grande campo, limpo de matos, onde costumam ter uma estaca ou pau verticalmente
que serve de ponto de vista e termo fixo à roda do qual dormem os animais
perseguidos da batida do campo. A este lugar chamam rodeio. Servem-se também de
alguns cercados ou grandes currais diante de sua porta onde recolhem de noite
algumas vacas de leite, aquelas pessoas que tem curiosidade de fazer o queijo e
a manteiga. No tempo conveniente ao transporte, matam todos aqueles bois que
podem ter couros de valor de 12 até 16 tostões que é a sua maior renda e
colheita; e a carne que não podem comer deixam no campo às aves de rapina de
que abundam aqueles terrenos. Semeia-se algum trigo, pouco, em uns cercados ou
grandes hortas que formam com madeiras que tiram dos matos sem ordem de
escolha; porque nenhum entende nem pretende firme estabelecimento na Província
que julgam será com facilidade invadida pelos castelhanos”.
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