História e Historiografia do RS

quarta-feira, 6 de junho de 2018

O NAUFRÁGIO DO NAVIO EITEA

A presença de pastores protestantes no Brasil recua ao ano de 1824, quando Friedrich Osvald Sauerbronn chegou ao Rio de Janeiro junto com 300 colonos alemães. A sua missão foi promover o povoamento de Nova Friburgo. No Rio Grande do Sul, o primeiro pastor, Johann Georg Ehlers, chegou no mês de novembro de 1824, na recém fundada Colônia de São Leopoldo. O primeiro culto foi celebrado no natal de 1824 dando início a presença dos pastores nas comunidades evangélicas alemãs criadas no Rio Grande do Sul ao longo do século XIX. Quando da vinda do segundo pastor Carl Leopoldo Voges à Província, evidenciando os perigos da navegação naquela época, ocorreu um naufrágio quando da viagem entre o Porto do Rio Grande e Porto Alegre. Era o mês de janeiro de 1825 quando o bergantim Flor de Porto Alegre naufragou nos bancos de areia na altura de Mostardas. Dois colonos alemães não conseguiram nadar até à praia vindo a falecer.
        Entre os inúmeros naufrágios ocorridos nas proximidades da Barra do Rio Grande, vamos recordar de um sinistro que envolveu colonos alemães no mês de janeiro de 1868. O que se evidencia no relato é a total falta de ética náutica por parte do comandante da embarcação. O navio chamava-se Eitea e trazia imigrantes alemães do Porto de Hamburgo para o Porto do Rio Grande. 
     Dentre os passageiros estava o pastor Heinrich Wilhelm Hunsche que atuou no Vale do Caí até 1908. Quando do naufrágio, estava em Rio Grande Jacob Rheingantz que desejava que o pastor fosse atuar na Colônia de São Lourenço. Hunsche não aceitou o convite e foi morar em Linha Nova, entre Nova Petrópolis e São José do Hortêncio onde residiu na casa de Georg Heinrich Ritter comerciante e o criador da primeira cervejaria no Rio Grande do Sul. As técnicas de produção de cerveja que foram aprendidas por este imigrante na Alsácia-Lorena faziam nascer à produção da cerveja na Província do Rio Grande do Sul no mesmo ano em que ocorreu o naufrágio que será relatado.
O pastor Hunsche é o autor da descrição dos acontecimentos (In: HUNSCHE, Carlos H. Pastor Heinrich Wilhelm Hunsche e os começos da Igreja Evangélica no Sul do Brasil. São Leopoldo: Rotermund, 1981) ocorridos quando a embarcação adentrou na Barra do Rio Grande após uma longa viagem de 90 dias. Irresponsabilidade e o stress da longa jornada poderiam ter levado a morte de centenas de pessoas que estavam a bordo. Como o calado da Barra Diabólica normalmente estava comprometido pela pequena profundidade, o exercício de paciência era fundamental aos navegadores. Os navios poderiam ficar vários dias ou até semanas esperando pela entrada no canal de acesso ao Porto do Rio Grande. O que exigia um controle emocional rigoroso, pois, as dificuldades de acesso a Barra mexia com o psíquico de todos. A longa viagem, associada ao consumo de álcool pela tripulação, construíram mais um episódio de naufrágio. 
        “Finalmente, no dia 19 de janeiro, à tarde, enxergamos a tão esperada costa do Brasil, após 90 dias de viagem. Era domingo, o mar calmo e tranqüilo. Já havíamos celebrado o culto. Não foi possível entrar, neste mesmo dia, no porto, altamente perigoso, de Rio Grande; mas, no outro dia, entraríamos com toda certeza. Este dia, 20 de janeiro, aniversário do meu colega Brutschin, tornou-se desastroso para nós; naufragou o navio há três horas e meia ao sul de Rio Grande. A manhã rompeu calma, tranqüila e risonha, enchendo os nossos corações de júbilo e alegria. O vento, o tempo, a proximidade da terra - tudo prometia uma feliz entrada ao porto. Às nove horas avistamos o farol. A primeira saudação fez-se por meio de sinais. Que alegria: enxergávamos clara e nitidamente, as casas de Rio Grande! (*de fato não era Rio Grande mas a localidade da Barra onde ficava o farol). Mas, ai de nós! O capitão queria livrar-se do seu navio obsoleto. Bêbado, como toda a sua tripulação, sinalizava, propositadamente mal, que teríamos 11 pés de calado, quando, na verdade eram só 8 a 7. O farol, mesmo assim, respondeu que não haveria água suficiente na barra e que não poderíamos entrar. Visivelmente irritado, o capitão voltou para o mar. Algumas horas depois, aproximou-se novamente. Como deixara o sinal em 11 pés de calado, avisaram, outra vez, do farol: Pouca água! Voltaram a beber e, em aparente indignação pela negativa da barra, o capitão dirigiu o navio para o sul, a toda vela. Pouco depois, nos encontrávamos entre os bancos de areia. Passamos arrastando sobre os primeiros bancos. O próprio capitão havia pegado o leme e, cambaleando para lá e para cá de embriagues, comandava, com voz de causar pavor: Colham as velas! e fez com que o veleiro encalhasse diante da arrebentação, apesar do vento e do tempo bom...
Do farol tinham observado as manobras do capitão e haviam previsto que o navio iria naufragar. Foi a nossa sorte! Depois de muito temer e ansiar, notaram, perscrutando apreensivamente a redondeza, a aproximação de um bote salva-vidas tripulado por seis homens corpulentos. Provinha de uma embarcação fundeada a cerca de uma hora e meia do nosso local, o paquete Proteção. Fincaram uma estaca na duna perto do nosso veleiro e, depois de atar na estaca um cabo, vieram de bote para o navio e firmaram nele a outra ponta do cabo. Ao longo deste cabo iniciaram a operação de resgate: Às costas de um mulato forte cheguei a terra sem sequer molhar os pés. Em honra aos brasileiros, seja dito, estes tripulantes prestaram um serviço de auxílio bom e inesquecível para nós. O desembarque em solo brasileiro efetuou-se apenas com as roupas que vestíamos na ocasião. O restante, como bagagem, lembranças, presentes etc, permaneceu a bordo da escuna que a todo instante afundava mais”.
Tendo sobrevivido e começando a superar as horas de pânico, os dois pastores Hunsche e Brutschin, passaram a primeira noite a bordo do paquete Proteção, onde foram tratados com a maior cordialidade e pela primeira vez provaram um prato tradicional no Brasil: o feijão e o arroz.


 
Carta de  J. B. Johnson (1866) identificando a profundidade do acesso ao Porto Velho do Rio Grande. Os bancos de areia tornavam o acesso a Barra do Rio Grande difícil. A construção dos Molhes da Barra (1915) buscou garantir a segurança da navegação.  



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