História e Historiografia do RS

segunda-feira, 4 de junho de 2018

A NÁUSEA

"para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse." (Sartre, A Náusea. Editora Nova Fronteira, 1983).


O primeiro romance de Jean-Paul-Sartre (1905-1980) está completando 80 anos! “A Náusea” foi publicado em 1938 e  permite observar a trajetória de homens reais destituídos de relevância social tendo como pano de fundo o mundo real.  
A estória é narrada em terceira pessoa e se baseia nos diários de Antoine Roquetin, um fictício historiador que viajou pela Europa e se estabeleceu em uma pequena e também fictícia cidade portuária da França: Bouville. Nesta localidade ele começa a escrever a biografia de um marquês do século XVIII e também um diário intimista que o leva a uma reflexão radical de sua existência e quanto ela é vazia e sem sentido. Esta realidade do vazio existencial se traduz enquanto uma náusea visceral. A existência humana e a noção de liberdade e concretude são arrastados para uma viagem interior sem garantias de um porto seguro. Sartre escreveu o livro o “Ser e o Nada” em 1943, mas neste romance já estão colocados várias discussões do Existencialismo sartreano. Martin Heidegger é uma influencia fundamental para Sartre pois aquele filósofo alemão pensava que o ser humano vem do nada e se dirige para o nada. Vindo do nada ele somente  passa a existir, quando começa a fazer-se, a construir-se. Repetindo Heidegger, a existência humana é sempre um projeto e existir é projetar-se para o futuro.
A concepção de historicidade e de ciência histórica também foge dos enfoques tradicionais:
“Não se trata de pensar mais a História com H maiúsculo, como história de datas e heróis, de grandes feitos. A história não contém certezas e uma ordem rigorosamente lógica, e isso porque é feita por nós, seres humanos comuns, Para-sis que necessariamente buscam em vão ser o que nunca serão, a completude. Com o passar dos meses, Roquentin começa a identificar suas sensações, o estranhamento que passa a ter diante de uma folha de papel, uma maçaneta, uma raiz de uma árvore. A contingência é descoberta como uma náusea, como um desvelamento vertiginoso do qual não pode se livrar porque descobre que ele se identifica com a própria Náusea. (...)Dizer que a história está ausente de A Náusea é ainda pensar a história com H maiúsculo, é ainda pensar que históricos são somente os grandes acontecimentos feitos por grandes homens, é ainda conceber a História como encadeamento necessário entre os fatos, é ainda acreditar na História que Sartre começa a destruir nesse romance. E a história que começa a surgir em seu lugar é a história contingente realizada por “apenas indivíduos”, é a mesma que aparecerá como estrutura necessária ao Para-si em O Ser e o Nada, e é a mesma que ganhará concretude e peso extremo em Crítica da razão dialética. Se talvez seja uma  “História” que provoque o afogamento de Sartre na história real, se talvez ele precisou de uma guerra mundial para dar importância mais concreta aos problemas históricos, esse ato revela que tudo é história, até mesmo a vida pacata e tediosa de um historiador em Bouville. Muitos dos personagens de Sartre tentam sair da história, mas, ao se afogarem nela, aprendem que, mesmo que saiam desse rio, terão para sempre as marcas e cicatrizes dessa luta contra (e portanto também com) a história”.[1]
Em Sartre a existência prece a essência, ou seja, os homens nascem vazios e sem razões metafísicas para existirem: a Ideia de Deus e de Natureza Humana não teriam fundamento. Como primeiro existimos para depois construirmos nossa essência em sociedade, a essência é liberdade, o homem está condenado a liberdade.    
“Sinto vontade de vomitar – e de repente aqui está ela: a Náusea. Então é isso a Náusea: essa evidência ofuscante? Existo – o mundo existe -, e sei que o mundo existe. Isso é tudo. Mas tanto faz para mim. É estranho que tudo me seja tão indiferente: isso me assusta. Gostaria tanto de me abandonar, de deixar de ter consciência de minha existência, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca… E subitamente, de repente, o véu se rasga: compreendi, vi. A Náusea não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu”.
         Gerd Bornheim interpreta a experiência da náusea em três níveis: a necessidade de converter a revelação do absurdo em um sentido que justifique a existência humana: o existencialismo deve ser um Humanismo; revela a consciência que é o “núcleo instantâneo” de minha existência; a consciência não pode ser sem o outro que não ela mesma, ela só existe por aquilo do qual ela tem consciência.[2] O esforço de Sartre foi de engajar-se a história presente e combater as teleologias de direita e esquerda, que inviabilizassem o indivíduo de exercer sua liberdade e todo o peso de responsabilidades inerentes a esta condição. Bornheim[3] analisou que entre o livro A Náusea (no qual a História é um absurdo destituído de logicidade) e o livro Crítica da Razão Dialética, Sartre já se volta a “estabelecer uma história humana com uma verdade e uma inteligibilidade”, tese que seria escrita no volume 2 da Crítica da Razão Dialética o qual nunca foi publicado: o marxismo escrito na perspectiva humanista do existencialismo sartreano.
No epílogo do livro o personagem Roquentin vê na literatura um caminho para obter a liberdade e construir uma existência com autenticidade:
“Enquanto espera o trem para Paris, começa a pensar na música, na cantora, no compositor e nota na música a existência daquelas pessoas, que a arte os fizeram existir, este pensamento lhe dá uma certa alegria e começa a pensar no que poderia fazer para existir de fato, e começa a ver uma possibilidade de escrever um romance “[...] Um livro. Um romance. [...] Um livro. Naturalmente, no inicio seria um trabalho tedioso e cansativo; não me impediria de existir e de sentir que existo.” 



[1] SOUZA, Thana Mara de. A presença da história no “primeiro” Sartre: Roquentin e a náusea frente à ilusão da aventura heróica In: Princípios.  Natal: v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 87-105.
[2] BORNHEIM, Gerd. O Existencialismo de Sartre. In: Curso de Filosofia. 11ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 232-243.
[3] BORNHEIM, Gerd. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 1984, p. 226-227. O autor questiona sobre a transição do pensamento do plano meta-histórico (livro O Ser e o Nada) ao histórico.





A Náusea em Quadrinhos. Ilustração de R. Crumb. The Graphic Canon 3. Seven Stories Press, 2013.




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