História e Historiografia do RS

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

BIGAMIA E INQUISIÇÃO


Azulejo português do século XVIII mostrando uma cena de desprendimento moral. Acervo: Fábio Khun. 

         A vida tumultuada do soldado Clemente José dos Santos acabou virando fonte para a história social do século 18. No ano de 1795, com 46 anos de idade, ele apresentou-se em Lisboa perante o inquisidor Joaquim José Guião, acusado de cometer o crime de bigamia, um delito moral que estava sob a competência do Tribunal do Santo Ofício. Além de moral, era um delito contra a fé. Na interpretação do historiador Fábio Khun (Caça aos Hereges nos Pampas In: Revista de História da Biblioteca Nacional, janeiro de 2006), mais que um delito moral, a bigamia era vista como um delito contra a fé. Aos olhos do Santo Ofício, os bígamos ofendiam a dimensão religiosa do matrimônio ao desprezarem sua indissolubilidade. Casar-se outra vez, já estando unido a um cônjuge, a despeito das circunstâncias que tenham levado aos casamentos, tornava o bígamo um herege convicto.
Interrogado pela Mesa inquisitorial, relatou duas décadas da história de sua vida, desde o seu primeiro casamento em 1771, até ser preso em Porto Alegre, no ano de 1790. Clemente era natural da freguesia da Ceira, bispado de Coimbra, ingressando como soldado no Regimento dos Dragões de Aveiro, acabando por desertar iniciando sua ficha de descaminhos. No ano de 1771 sentou praça no Regimento de Olivença dos Algibeirões e, casou com Maria Batista, uma senhora viúva de dois maridos com cerca de quarenta anos de idade. A vida conjugal durou apenas 15 dias, pois Clemente foi preso devido à deserção do regimento dos Dragões. Submetido a Conselho de Guerra foi sentenciado à pena capital, porém, foi perdoado por Sua Majestade que o degredou perpetuamente para os Estados da Índia. O navio que fora embarcado o soldado fez escala no Rio de Janeiro, e Clemente foi requisitado pelo vice-rei marquês de Lavradio para ser enviado com tropas para integrar-se ao Exército do Sul para expulsar os espanhóis do atual Rio Grande do Sul. Em 1776 os luso-brasileiros expulsam os espanhóis da Barra do Rio Grande e de outras regiões do território rio-grandense. Nesta conjuntura, Clemente deserta das tropas em Rio Grande e vai para a Vila de Porto Alegre, afirmando ser capataz e feitor de fazendas. Porém, será novamente preso devido a sua deserção das tropas do Rio Grande. Ao ser trazido para a Vila do Rio Grande de São Pedro, com ele estava uma rapariga casadoura chamada Maria Felícia que se decepcionou ao chegar na Vila e escutar dos soldados oriundos de Coimbra, que o futuro esposo já era casado. Esta informação foi mais longe do que as ruas da pequena Vila e chegou até os ouvidos do Santo Ofício. Mas isso é uma história para um momento posterior.
O primeiro problema a ser enfrentado pelo aventureiro foi responder por mais esta deserção, sendo levado para o Rio de Janeiro e condenado a cinco anos de degredo em Angola. Clemente conseguiu escapar da prisão militar e rumou para Porto Alegre, por via terrestre, levando ‘um ano’ para este deslocamento atravessando matos e dificuldades inúmeras, inclusive trabalhando durante meses em Curitiba e lá juntando algum dinheiro. Em 1781, comprou algum gado e se ‘arranchou’ na Vila de Nossa Senhora dos Anjos, inicialmente um aldeamento de índios missioneiros guaranis, atualmente cidade de Gravataí. Nesta nova vida, pacata mas de muito trabalho nas ‘lides campeiras’, fez amizade com um ‘certo homem’ que insistiu que o estancieiro Clemente se casa com sua filha. Dada a ‘insistência’ do pai da moça, ele se viu na ‘obrigação’ de retribuir o oferecimento e começou, segundo o seu depoimento ao Santo Ofício, “a ter um trato ilícito, que durou quase dois anos”. O ‘trato ilícito’ era a prática do concubinato, modalidade de união conjugal amplamente disseminada no período colonial. Conforme Khun, não sendo legalmente casados, tinham uma ‘vida escandalosa’ aos olhos das autoridades eclesiásticas, visto que desrespeitavam o sagrado sacramento do matrimônio, além de ser um indício de heresia, o que atemorizava o Santo Ofício.
Um pouco mais de pimenta na vida de Clemente ocorreu quando o capitão Guimarães, da Cavalaria Auxiliar do Continente, entrou em cena. Este personagem era padrinho da moça em foco, insistindo que Clemente o procurasse para explicar a situação de concubinato e querendo repor a honra da enteada. Com receio de ser reconhecido como desertor e foragido da justiça, além de praticante de concubinato, ele se negou a ter esta ‘amigável conversa’. Porém, em 1783, por ocasião de uma diligência da justiça, o réu foi procurado e preso sem antes ter feito uma ‘calorosa recepção’ “disparando vários tiros contra aqueles que o prendiam”. Para a tornar a situação mais complexa e o drama de Clemente ainda maior, o dito Capitão pressionou o ‘sedutor’ soldado a casar com a moça desencaminhada que chamava-se Maria Teresa da Conceição. Cedendo a pressão no ano de 1784 ele contraiu núpcias com Maria Teresa.
Para Fábio Khun, ao ceder às pressões do capitão, o ex-soldado acabou complicando definitivamente a sua vida, pois, em vez de cometer o delito mais brando do concubinato (em geral punido pela justiça espiscopal, ou tribunais dos bispados, apenas com admoestações ou multas), passou a cometer o grave delito de bigamia, punido com relativo rigor pelo Tribunal do Santo Ofício. Clemente continua em evidência pois ressurge a indignada Maria Felícia que o acompanhara até a Vila do Rio Grande, dizendo que fora enganada e que também manteve ‘trato ilícito’ com o ex-soldado que era casado em Portugal! A pressão do capitão fez com que os ‘Banhos Matrimoniais’, um processo que corria nas paróquias antes do casamento buscando averiguar a disponibilidade dos noivos, não conseguiu impedir a realização do casório devido ao jeitinho dado pelo padrinho do casamento, o Capitão.
E assim Clemente retomou a vida e viveu ‘supostamente’ feliz com a nova esposa, tendo inclusive dois filhos, até o início de 1790. Porém, neste ano ele será detido por ordem do Tribunal do Santo Ofício e encaminhado para Porto Alegre, onde ficou um ano preso.  Sua vida a partir de então foi a permanência em cárceres esperando julgamento. Até que em janeiro de 1795, confessou os seus pecados em Lisboa, perante os inquisidores. Para fechar esta desventurosa trajetória o ex-soldado e bígamo foi queimado na fogueira? Não! Ele teve a sorte de que o Santo Ofício já estava muito mais ameno nas condenações devido às conjunturas políticas na Europa. A pena foi o degredo por cinco anos em Angola, punição que ele já havia sido condenado no Rio de Janeiro e não cumprira.
Como sua história de vida foi construída através do seu depoimento para o Tribunal do Santo Ofício aqui encerra o que ficou preservado de suas aventuras e desventuras, bem como não se sabe o que aconteceu depois. O resto é incógnita, ou como diria o grande literato Érico Veríssimo, ‘o resto é silêncio’, este silêncio que impregna a maior parte das histórias de quem viveu no passado ou que vive no presente. 


Regimento do Santo Ofício de 1774. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 

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