História e Historiografia do RS

sábado, 5 de agosto de 2017

O POLÊMICO PRÉDIO DOS CORREIOS

Cartão-postal Correios e Telégrafos. Acervo: https://www.bvcolecionismo.lel.br/


Com a construção da Igreja de São Pedro em 1755 (a edificação luso-brasileira mais antiga do Rio Grande do Sul), o espaço em sua frente foi pouco a pouco se definindo como um epicentro das atividades religiosas e lúdicas da comunidade. 

O espaço da fé e dos enterramentos (que ocorriam dentro da igreja e na sua frente) foram se modificando após 1840 para comportar um espaço lúdico da população. Circos, teatros mambembes, apresentações artísticas e religiosas utilizavam o espaço público do que passou a ser chamado de Praça Dr. Pio. O sagrado e o lúdico muito próximo e muitas vezes interagindo.

Desde a segunda metade do século 19 se discutiu sobre a construção de espaços públicos e privados nesta área central cada vez mais valorizada. Inclusive, uma escola foi aí construída e incendiada na década de 1890. Porém, a grande polêmica, envolvendo até o Presidente da República ocorreu no ano de 1947 quando da decisão em construir o prédio dos Correios e Telégrafos em parte da área ocupada pela Praça Dr.Pio, que nesta época também possuía algumas obras de arte pública: os guris de Matteo Tonietti e o busto de Carlos Gomes (que tinha o rosto voltado para a porta da igreja...).

Esta história foi pesquisada por Olivia Silvia Nery no Trabalho de Conclusão de Curso de História Bacharelado (FURG) recentemente defendido: “O Prédio dos Correios e Telégrafos do Rio Grande: patrimônio e memória da cidade”. O Prédio foi o foco de intensa polêmica quando de sua construção e em 2010, frente ao seu estado de deterioração, desencadeou nova polêmica inclusive no sentido de sua demolição. Até que ocorra nova alteração no “pingue-pongue” do destino do prédio a população ainda espera o início das obras que devem manter “os Correios” neste local e continua a conviver com os “já históricos tapumes de proteção”.
Mas como se deu a polêmica de construção do Prédio dos Correios em 1947-48? Conforme o trabalho de Olivia Nery o anúncio de construção do prédio foi bem recebido por alguns segmentos da sociedade local (inclusive pela Prefeitura) e gerou aversão, especialmente de católicos que freqüentavam a Igreja Matriz de São Pedro. Afinal, a Igreja e o espaço do Largo Dr. Pio haviam sido tombados pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1938) não sendo permitido edificações nesta área. Na seqüência dos eventos de 1947 o tombamento da área será invalidado o que deu espaço a construções futuras ao seu lado que contribuíram para descaracterizar o espaço ocupado pelo prédio barroco colonial da Igreja.

Conforme Nery, tudo começou quando no dia 24 de abril de 1947, o jornal Rio Grande publicou uma reportagem noticiando que o Governo Federal tinha a disponibilidade de verba para a construção de um novo prédio para os Correios e Telégrafos na cidade do Rio Grande. Tal notícia veio através de um telegrama do Ministro da Viação de Obras Públicas, Sr. Clóvis Pestana, para o prefeito municipal, Sr. Fernando Eduardo Freire. Essa notícia vinha sendo esperada por muitos anos pelos rio-grandinos, e foi enaltecida na manchete publicada pelo jornal Rio Grande em abril de 1947: “O Novo Edifício dos Correios e Telégrafos: uma notícia auspiciosa”. No referido telegrama, o ministro ainda comunica ao prefeito a necessidade de doação por parte da prefeitura de um terreno para a sua construção, e que este deveria ter as dimensões de trinta por quarenta e cinco metros, caso não fosse de esquina. Para tal obra estimava-se um valor aproximado de três milhões de cruzeiros.

A partir desse momento, tem início uma grande discussão acerca da possível localização do novo edifício dos Correios e Telégrafos, tendo o prefeito indicado a utilização da área na Praça Dr. Pio. O jornal Rio Grande defende a proposta junto com alguns segmentos como a Câmara do Comércio, o Rotary Clube e Sociedade União Comercial dos Varejistas.
A decisão foi duramente criticada no jornal Cruzeiro do Sul que era redigido pelo Monsenhor Eurico de Mello Magalhães, vigário da Igreja Matriz de São Pedro. Magalhães buscou apoio até junto a Diretoria Geral do SPHAN fazendo com que o assunto chega-se a capital da República: o Rio de Janeiro. Apesar do apoio do SPHAN em preservar o aspecto tradicional da Praça e impedir a construção do Prédio, a polêmica chegou até o presidente da República Eurico Gaspar Dutra. Telegrama datado de 2 de dezembro de 1947 encerra a discussão travada na cidade: “Palácio do Catete DF 576, 29, 27. 17H15 Tenho a satisfação de agradecer o telegrama em que V. S. expressa as congratulações dessa Câmara do Comércio pelo início das obras do Edifício dos Correios e Telégrafos dessa cidade. Cordiais saudações. Eurico Gaspar Dutra”.

Festejo de uns e tristeza de outros, a modernidade atropelava o discurso da preservação de um espaço público repleto de memórias ligadas ao cotidiano da comunidade por mais de dois séculos. A igreja continuava tombada mas o espaço deixava de ser preservado por determinação federal o que geral mal estar nos preservacionistas ligados ao SPHAN. A resistência do monsenhor Magalhães prossegue mas ameaças de processo por instigar o descumprimento de determinações federais vai desmobilizando a polêmica movida no jornal Cruzeiro do Sul. As obras prosseguem e o prédio é inaugurado em 28 de dezembro de 1948. O prédio foi construído conforme arquitetura Art-Déco, e era moderno para época, principalmente comparado com as construções do século XIX da cidade. A localização do Prédio e o estilo arquitetônico foi duramente criticado pelo renomado arquiteto Lucio Costa.

O sentimento de impotência frente à articulação política de descaracterizar a Praça Dr. Pio foi expressa numa poesia publicada no Cruzeiro do Sul: Canto de amor e despedida ao Largo da Matriz – por Lúcio de Faria. O autor profere uma maldição aos violadores da tradição:
“Vejo agora o pedaço mais sagrado do Rio Grande,
Este largo – este velho Largo da Matriz,
Em tuas areias serelepes a dançar ciranda com os ventos,
Quantas vezes assistisses em dois séculos de história,
As emoções das despedidas, as alegrias dos regressos.
O teu solo abençoado recolheu Lágrimas de mães, esposas, noivas, irmãs,
Daqueles que deram as suas vidas,
Para que esta terra fosse nossa e de mais ninguém. [...]
Agora que homens sem memória e coração,
Querem profanar-te, ó velho Largo,
Farei dos meus versos lâminas de aço, duro como a espada de Silva Paes,
Certeiro como o ferro de Pinto Bandeira;
Indomável como a altaneira de Sepé,
Para trespassar essas almas de cimento,
Corações de pedra que te traíram ó meu Rio Grande heróico.
[...] Devolvo em versos o acintoso foguetório,
porque sei que eles hão de espoucar eternamente, na consciência dos teus violadores,
como um grito de protesto.... como uma maldição”

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