História e Historiografia do RS

domingo, 6 de agosto de 2017

A BARRA DIABÓLICA

Quando da chegada de Silva Paes, em fevereiro de 1737, com o objetivo  de iniciar a ocupação militar e promover o povoamento da futura cidade do Rio Grande, navegar pela barra representava um momento crítico do filme épico da fundação luso-brasileira no sul do Brasil. No historiador Simão Pereira de Sá, contemporâneo de Silva Paes, o relato desta chegada apresenta contornos dramáticos que persistiram, em outros autores, por quase dois séculos: “Antecipados desta sorte os progressos do Rio Grande chegou o Brigadeiro José da Silva Paes com 420 homens entre oficiais e soldados tirados das tropas auxiliares do Rio de Janeiro, Minas, Bahia e Pernambuco (...) mas, receando o Brigadeiro o naufrágio das embarcações no perigo da Barra, entrou a segurar o ingresso com exame de piloto, cautelas de Capitão (...) Averiguada finalmente a perigosa e desconhecida Barra  que tem três diferentes entradas, uma ao sul e outras ao norte e sudeste”. .
 O próprio Silva Paes, em carta de 12 de abril de 1737, desabafou, após cruzar com sucesso pelo trajeto entre cômoros de areia, que havia tirado à barra do Rio Grande de São Pedro “a máscara que até aqui metia tanto medo”. Errôneo otimismo...


OS ESTRANGEIROS E A BARRA


Aos viajantes estrangeiros que conheceram a cidade e publicaram livros sobre o Rio Grande do Sul no século passado, a travessia da barra constituiu um momento de ansiedade antes do desembarque na cidade. Registros da passagem pela “barra diabólica” e suas dificuldades são um lugar comum nos escritos que edificam um imaginário de proeminência da natureza sobre a civilização.
O comerciante inglês John Luccock, em 1809, assim descreve a passagem: “Muito antes de avistarmos qualquer sinal que servisse para orientar nossa rota, vimo-nos em água rasa e cercados de bancos de areia. O capitão tendo-se postado no topo do mastro, avistou esses baixos e os canais dentre eles, com mais nitidez do que se estivesse sobre o tombadilho, dando-nos instruções sobre a maneira de governar. Afinal surgiu um bote que veio ao nosso encontro, com um piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados, nos prestou idêntico serviço. Esses sinais não só indicam a rota que o navio deve seguir, como, às vezes, aconselham a que deite âncora onde está, ou mesmo a que retorne ao mar alto, quando não há água bastante na barra para que ele possa transpor”.
O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1820, relata as dificuldades para a navegação e as providências estabelecidas para evitar naufrágios na barra do Rio Grande, conforme ele, várias precauções foram tomadas: “Um homem continuamente encarregado de sondar a barra por meio de sinais informa as embarcações se a quantidade de água, que varia sem cessar, lhe permite a entrada; estas também fazem sinais indicativos sobre o calado de suas embarcações; enfim, quando saem ou entram, o prático da barra, num pequeno barco denominado de catraia, vai mostrando, por meio de uma bandeira, que ele inclina de um lado ou de outro o caminho a seguir.” Saint-Hilaire constata que a barra “não fica sempre no mesmo lugar”, exigindo um acompanhamento constante desta dinâmica. Segundo o viajante francês “nada se iguala a tristeza desses lugares. De um lado, o bramir do oceano; e do outro, o rio (...) destroços de embarcações semi-enterradas na areia recordam pungentes desgraças e nossa almas se enche, pouco a pouco, de melancolia e terror”.
O médico alemão Robert Avé-Lallemant, esteve na cidade em fevereiro de 1858, e o fluxo de deposição de sedimentos persistia um problema aparentemente insolúvel. Segundo ele, “a barra do Rio Grande é, sem dúvida, uma das mais desagradáveis e mais perigosas que existem e poucos se encontrarão que, em proporção com os navios entrados, tenha havido tantos naufrágios como aqui. Fora, no mar, estendem-se os baixios e, em frente  da barra, um banco de areia; ao norte ou aos sul desta, se acham as passagens variáveis, aliás, de local e de profundidade; por vezes, ambas as passagens estão más, sendo necessárias exploração e observação de áreas para permitir a entrada do navio ou adverti-lo de que não pode entrar. Vêem-se infelizmente restos e destroços de navios naufragados que se elevam sobre os baixios”.
Os viajantes ressaltam as dificuldades que a barra oferecia para a navegação. Inclusive a profundidade tornava-se cada vez menor, inviabilizando a entrada de navios com maior calado. Enquanto no final do século 18 a profundidade chegava a 4,40 metros, ao longo do século 19 foi diminuindo até chegar em 2,75 metros em 1883.

A BARRA E OS MOLHES

         Vários engenheiros analisaram a situação da barra na segunda metade do século passado, esbarrando os projetos propostos em dificuldades técnicas e financeiras. Em 1875, o engenheiro inglês Sir Clarke Hawkshau, emitiu um relatório em que propõe a construção de dois quebra-mares. Apesar de pessimista em sua viabilidade técnica, a idéia de Hawkshau foi utilizada em 1883 pelo engenheiro Honório Bicalho que previu a construção do molhe leste e molhe oeste. O engenheiro holandês Pieter Caland fez algumas alterações no projeto de Bicalho. Em concorrência pública, a companhia francesa Societé Anonyme Franco-Brésilienne de Travaux Publics assumiu a realização da obra (1890), que por problemas financeiros não foi iniciada. A lenta decisão em retomar o projeto pelo governo republicano brasileiro atrasaram o andamento. O engenheiro Corthell fundou uma companhia mantida por capitalistas norte-americanos chamada Port of Rio Grande do Sul que também não dispos dos recursos para a obra. O mesmo engenheiro, em 1908, conseguiu o capital necessário para o início dos trabalhos com investidores franceses criando a Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul. Finalmente, com um projeto de construção de um porto marítimo, de manutenção de uma profundidade de 10 metros ao longo do canal e edificação de dois molhes (com cerca de 4 km de extensão e 800 metros de largura) para garantir a manutenção de um calado seguro para as embarcações, iniciavam às atividades preliminares para a grande obra que custou cerca de 18 mil contos de réis-ouro.
         Os problemas para construção da obra também estavam ligados a falta de matéria-prima em Rio Grande. Cerca de 3,4 milhões de toneladas de rochas foram utilizadas exigindo um grande esforço para exploração de duas pedreiras no interior de Pelotas, e o deslocamento via férrea (linhas férreas foram construídas especialmente para o escoamento) e via marítima/terrestre num espaço viável para que as obras não parassem. Um gigantesco  guindaste, o Titan entrou em funcionamento no molhe leste em julho de 1911. Em novembro do mesmo ano, outro Titan passou a funcionar no molhe oeste. A construção teve início em outubro de 1911 sendo inaugurada em 1º de março de 1915, quando o navio-escola Benjamin Constant, com um calado de 6,35 metros, cruzou a barra e atracou no Porto Novo.
O longo trajeto de reivindicações e desafios para a população local resultou numa das mais importantes obras de engenharia mundial do início do século, onde trabalharam mais de quatro mil homens. A partir de 1915, Rio Grande passou com maior intensidade a dinamizar-se com o comércio marítimo internacional. A barra diabólica cedia frente ao crescente otimismo burguês do início do século, ligado a crença do domínio da tecnologia sobre a natureza.


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