História e Historiografia do RS

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

GUTTENBERG: ENTRE O SONHO E O PESADELO

 
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=829447&pagfis=1040

O Almanak Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul para 1894 publicou este texto de D. Anna Aurora do Amaral Lisboa da cidade do Rio Pardo

Não sei a origem desta lenda do sonho/pesadelo de Guttenberg após a invenção da imprensa. Mas a ideia é muito reflexiva e atual. E possivelmente, mesmo no passado, sempre foi objeto de tensão. Especialmente, por conclamação de tantos periódicos antigos de serem "a voz da verdade", um veículo "isento de paixões partidárias", o "relato dos eventos", "apenas informativo" etc. 

A imprensa não tem como seguir estas normativas da simples reprodução dos eventos sem qualquer interpretação. Ela é uma construtora de representações do tempo presente e de releituras do tempo passado. Está situada no multifacetado espaço-tempo das sociedades humanas. 

Porém, difícil de tolerar é, mesmo com discursos voltados a determinada perspectiva de processo político-econômico-social-cultural-personalista etc, o intolerável é continuar certos órgãos de imprensa a se dizerem neutros, científicos, reprodutores dos fatos, distante do calor das paixões etc. 

Um momento culminante foi durante a epidemia, quando um grande meio de comunicação afirmou que lá fora, no mundo da informação, estava o fake news, enquanto naquele canal residia apenas a verdade dos fatos (como se os fatos não fossem construídos...). Ao espectador caberia apenas venerar o culto às palavras verdadeiras proferidas pelos apresentadores que se comunicavam com deuses num oráculo. Não pense, não questione, apenas aceite que tudo o que precisas está nestas palavras e visões de mundo daquele canal. A nulificação do ser e a submissão aos valores exógenos a tua essência seria o único caminho a seguir.  

Quando um meio de comunicação cita sistematicamente um personagem, de forma exaltadora ou pejorativa, já evidencia posturas ideológicas. Outra abordagem comum é silenciar sobre um personagem, é buscar nulificá-lo e tirá-lo do mundo. Fazer com que as pessoas esqueçam que ele existe e só torná-lo notícia quando algo muito pejorativo precisa ser divulgado. A escolha feita da abordagem dos atores sociais busca construir e induzir visões de mundo nos leitores/telespectadores. Não há neutralidade. 

Nesta direção, e voltando aos primórdios da imprensa jornalística, quando um órgão dizia defender determinado partido, ótimo, pois ele era coerente, pois, o leitor encontraria determinada verdade em suas páginas. O problema era que a maioria dos periódicos se diziam não partidários e difusores dos fatos/eventos num rompante positivista de "reproduzir os fatos tal como aconteceram". 

As falas, os atos e as escritas, podem ser confusas, mas não são neutras ou estão fora do mundo social. São escolhas, conscientes ou inconscientes, de leituras e afirmações da reprodução de sistemas de materialidades e imaterialidades que existem fora do sujeito. 

A questão levantada pela articulista Anna Lisboa, no diálogo esquizofrênico de Guttenberg com as duas vozes bipolares que se digladiam entre avançar com a imprensa ou esquecer o invento, é de extrema relevância. Pois a problemática não é a reprodutibilidade técnica que rompe com a cópia única de um mosteiro e permite reproduzir em forma de livros ou panfletos, inesgotáveis cópias do modelo original: a descoberta material do tipógrafo. Isto é a técnica, que sem o conteúdo de uma "narração repleta de palavras" não teria sentido. E nas palavras residem as escolhas de decifração e encaminhamento de formas de existir em sociedade. De como organizar a vida econômica, política, social, cultural, religiosa etc. 

A imprensa de Guttenberg era feita de palavras impressas em papel. A imprensa atual da TV e internet, é feita de palavras, imagens, cenografias, sons e musicalidade. Um conjunto de vibrações visuais e sonoras carregadas de visões do que seria o mundo dos desafios a enfrentar, dos comportamentos e valores de civilidade a serem adotados. 

O suposto sonho de Guttenberg remete a imprensa ao espaço do humano e não de uma inteligência sobrenatural como guia isento e verdadeiro das narrações. E o humano remete a anseio de impor preconcebidamente, determinadas modelagens da massa material e imaterial que envolve as discursividades de diferentes atores sociais e seus anseios de conversão das sociedades aos seus desejos e aspirações. 

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