História e Historiografia do RS

sábado, 9 de setembro de 2023

RS E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul em 1809. Acervo: IHGRS. 


O Rio Grande do Sul não estão preparado para as mudanças climáticas!

O primeiro princípio para a ação é não negar a realidade. Ou mostrar espanto frente as tragédias.

Certamente, a solução é complexa mas fugir da existência do problema é muito mais problemática ou pode conduzir a novas tragédias.

O documento a seguir, retirado do site da Metsul (publicado no dia 06-09-2023 às 23h41) é uma referência histórica de questionamento do discurso político frente à perspectiva da prática científica no campo da Meteorologia.

"NOTA OFICIAL - O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, afirmou em entrevista ao programa Em Pauta, da GloboNews, na noite desta quarta-feira, que os modelos matemáticos de previsão do tempo de institutos meteorológicos não indicavam o volume de chuva que atingiu o estado nos últimos dias.

“Os modelos matemáticos previram as chuvas, em intensidade, mas não previram o volume de cerca de 300 milímetros nas diversas bacias hidrográficas da zona Norte do estado, da Região Noroeste, da Região Serrana, do Vale do Taquari – este que foi mais afetado”, disse para o canal de notícias. A declaração do governador, infelizmente, não procede. O momento no Rio Grande do Sul é de união de esforços de todos os gaúchos – e somos gaúchos – para apoiar e socorrer as vítimas da terrível catástrofe que se abateu sobre as comunidades do Vale do Taquari e do Norte do estado. Os esforços devem se concentrar nas pessoas e nas iniciativas para a retomada de um mínimo de normalidade.

O governador em sua fala, contudo, coloca em xeque o trabalho da Meteorologia e, por efeito, o nosso trabalho. Não era o nosso desejo emitir esta nota oficial neste momento de calamidade estadual, mas os esclarecimentos são devidos à sociedade gaúcha. A MetSul Meteorologia foi o único ente de previsão do tempo a advertir para a possibilidade de volumes de chuva acima de 300 mm na Metade Norte gaúcha neste começo de setembro. Como em junho tinha sido o único a alertar para a chuva extrema de 350 mm no Litoral Norte no ciclone. Como em fevereiro último emitiu a única previsão de chuva de 500 mm a 700 mm no Litoral Norte de São Paulo, prognóstico que foi reputado como “impossível” por especialistas ouvidos na mídia. Estas previsões foram baseadas na experiência dos nossos profissionais de até 40 anos no ramo meteorológico e nas nossas ferramentas de previsão do tempo em que a nossa empresa investiu nos últimos anos que incluem modelos próprios e os de maior índice de acerto do mundo, considerados “padrão ouro” na ciência meteorológica. No dia 31 de agosto, cinco dias antes da catástrofe, a MetSul Meteorologia publicou alerta com o título: “Setembro começa com chuva extrema, onda de tempestades e enchentes”. O aviso trazia projeção de modelo de 300 mm a 500 mm na Metade Norte e a nossa advertência de que poderia chover mais de 300 mm. No dia seguinte, em 1º de setembro, 72 horas antes do desastre, novo alerta sob o título “Alerta: chuva virá com volumes excepcionais de até 300 mm a 500 mm”. O texto dizia que “o cenário de precipitação para estes primeiros dez dias de setembro não tem precedentes nos últimos anos”, acrescentava que “os acumulados de precipitação em algumas cidades gaúchas somente durante os primeiros dez dias do mês podem atingir praticamente a média histórica de chuva de toda a primavera” e enfatizava que “a situação foge ao convencional”. O alerta assinalava que “estatísticas históricas do Brasil e do exterior mostram que o excesso de chuva causa mais vítimas fatais que vento forte ou tempestades, assim chuva extrema é situação de elevado perigo”. Destacava ainda: “bacias de maior risco são aquelas que cortam o Noroeste, o Norte, o Centro e o Nordeste do estado, o que inclui os rios que cortam os vales (Taquari, Caí, Sinos e Paranhana) assim como o Jacuí e o Uruguai”. E advertia para enchentes repentinas com o aviso de potenciais acidentes fatais com veículos em correnteza, causa de algumas das lamentáveis mortes neste evento trágico. Os modelos, assim, anteciparam os volumes de chuva. A gravidade do que se avizinhava já era conhecida muitos dias antes. A ciência meteorológica cumpriu o seu papel. O governador tem o nosso irrestrito apoio agora para exercer o seu papel que é liderar os gaúchos nos esforços incansáveis de ajuda e reconstrução das comunidades atingidas, vítimas de colossal desastre que nenhum meteorologista jamais deseja prever ou noticiar, assim como mandatário algum deseja enfrentar em seu mandato". 
 https://metsul.com/nota-oficial-declaracoes-do-governador-eduardo-leite-rs/ .


O texto é suficientemente explicativo para contrapor o discurso político frente ao discurso científico e dos fatos previstos em modelos matemáticos do clima e a concretização dos eventos. Em coletiva de imprensa no dia 6 de setembro, o governador voltou a sustentar a surpresa e admiração pela ocorrência das intensas chuvas que levaram a tragédia. É o que está publicado na página oficial do governo estadual: 

"Leite informou que o sistema de alertas da Defesa Civil funcionou adequadamente. E que "as prefeituras têm cadeia de comando da Defesa Civil e fazem os alertas e mobilizam as comunidades. Milhares de pessoas foram resgatadas nesse processo. A quantidade de chuva foi maior do que os modelos matemáticos previram. Choveu muito e em muitas regiões ao mesmo tempo. Nada semelhante foi visto assim”, observou o governador. “Não é hora de buscar culpados, mas de atender à população. O que aconteceu não tem precedentes.” https://estado.rs.gov.br/governador-apresenta-acoes-de-resposta-ao-desastre-natural-e-esforco-para-reconstrucao.

Uma análise preliminar do discurso identifica as palavras chaves da defesa: "o sistema de alertas funcionou adequadamente" (significa que não deverão se repetir as tragédias ou o adequadamente deverá ser incisivamente questionado); "a quantidade de chuva foi maior do que os modelos matemáticos previram" (completamente incorreto frente aos fatos apresentados pela Metsul); "nada semelhante foi visto" e "não tem precedentes" (em 2020, o Vale do Taquari passou por uma grave enchente quando foi discutido que era necessário investimentos maciços em prevenção...); "Não é hora de buscar culpados" (essa frase é a mais incisiva no sentido de encerrar a discussão). O problema não é buscar culpados mas aceitar que o Rio Grande do Sul não é mais o antigo Rio Grande do Sul que trazia certa previsibilidade climática de verão/inverno e intensidade das tempestades.  

É um desafio terrível para qualquer governante, mas a não aceitação de que as mudanças climáticas são uma realidade e que o Rio Grande do Sul está sendo duramente contemplado neste "novo normal" não é sustentável e deve ser questionada. 

Estamos diante do desafio da mudança cultural que exigirá o esforço deste e de tantos outros futuros governos estaduais e municipais. Os rios subirão com maior frequência e as áreas de risco (como as encostas) deverão ser monitoradas rigorosamente. A população, através de ações educativas persistentes, precisará repensar suas práticas culturais para estar adaptada a novos tempos de convivência com a natureza em fúria. Deverá estar preparada para a adversidade da falta de chuvas (fazer cisternas, poços, açudes) e para os excessos de chuvas em curtos períodos. 

E o que há de especial no Rio Grande do Sul para estar ocorrendo estes eventos?

A localização geográfica do Rio Grande do Sul propicia os eventos extremos que estão se acelerando com o aquecimento global. Como o Estado localiza-se numa região de circulação das massas de ar quente e muito úmidas vindas da Amazônia e de circulação das massas de ar frio vindas da Antártida, o encontro destas frentes -quente e fria- podem resultar em tempestades intensas. E o princípio fundamental é que a atmosfera mais aquecida pode resultar em fenômenos mais destruidores. E isto teve início em 2023? Certamente não! Podemos constatar, como exemplo, que esta discussão já está posta, buscando a leitura de alguns trechos desta matéria publicada em 7 de outubro de 2017 no site https://sul21.com.br. 

A discussão inicial é de que a  “tempestade que atingiu Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul no último dia 1 de outubro (2017) não foi um ponto fora da curva, mas a confirmação de uma tendência à qual a população dessa região e as autoridades públicas devem se acostumar e, sobretudo, se preparar para minimizar danos”. Ou seja, há seis anos (e bem antes) já é público que os eventos extremos não são "pontos fora da curva", e sim, partes de uma lógica de mudanças no clima.

O entrevistado foi Francisco Eliseu Aquino, professor e pesquisador do Centro Polar e Climático, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Francisco Aquino iniciou sua intervenção assinalando que a região Sul do Brasil e o Rio Grande do Sul em especial estão localizados em um ambiente atmosférico favorável a tempestades e, em virtude do aquecimento global da temperatura, esse quadro deve se acentuar nas próximas décadas. Os dados mais recentes não deixam muitas dúvidas sobre a realidade desse fenômeno. Nos últimos 30 anos, a temperatura média global subiu um pouco mais de um grau Celsius. O ano de 2016, destacou o pesquisador da UFRGS, foi o mais quente do último século, atingindo temperaturas até 5 graus Celsius acima da média em determinadas regiões. Não foi um aquecimento localizado apenas em algumas regiões, mas em praticamente todo o planeta. E a curva segue ascendente em 2017. O primeiro trimestre deste ano foi o mais quente do último século e o último mês de agosto um dos mais quentes do último século.
O Rio Grande do Sul, acrescentou, sempre foi palco de eventos severos, o que deve aumentar com o aquecimento da temperatura global. O Estado está localizado numa região de trânsito do fluxo de ar quente que vem da Amazônia e de entrada de ar frio que vem do sul. Segundo Francisco Aquino, Porto Alegre reuniu, no dia 1° de outubro, todas as condições para a ocorrência de tempo severo: entrada de ar quente do norte, entrada de ar frio vindo do sul e um jato de ar na troposfera funcionando como um exaustor. O problema desse tipo de cenário, advertiu, é a dificuldade de fazer previsões em função das nuvens convectivas que se formam em horas. “Uma única nuvem dessas gerou o tornado que atingiu São Miguel das Missões (no noroeste do Estado) em 2016”, exemplificou. 
O Rio Grande do Sul, concluiu Francisco Aquino, está intimamente ligado às mudanças ambientais glob
ais. “A América do Sul é o continente onde mais chove no planeta e as tempestades mais severas ocorrem justamente no Sul do Brasil. Esses fenômenos devem se intensificar nas próximas décadas com um grau de certeza muito elevado”, afirmou. https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2017/10/tempestades-severas-devem-aumentar-no-rs-nos-proximos-anos-diz-pesquisador/

Para ampliar a compreensão do tema reproduzo outra entrevista do professor Francisco Aquino para a revista eletrônica Humanita

"A culpa vem do alto: na atmosfera, ventos que cruzam o continente de oeste a leste, por cima dos Andes, ganham velocidade justamente na latitude da bacia do Rio da Prata. Entre 100 e 200 km/h, tal corrente de vento não passa imune pelas montanhas. Com ondulações, que influenciam o clima de toda a região, ela é a mãe dos eventos extremos no Estado. Isto sempre existiu. Desde que a gente tem o sistema climático organizado, ainda sem a existência do homem, esta circulação atmosférica foi sempre impulsionadora de tempestades severas, ciclones, períodos de chuva intensa ou até estiagens”, explica o professor. Mas algo mudou.

Pelo último século, o aumento das emissões de gases do efeito estufa — consequência da ascensão dos combustíveis fósseis, da agropecuária e outras ações antropogênicas — aliado ao desmatamento de matas e florestas — também ação do homem —, levou o planeta a registrar um aumento de mais de 1,07ºC em sua temperatura média em relação ao mundo pré-industrial (até meados do século 19). Este aquecimento global, no entanto, não foi homogêneo. Enquanto os termômetros no Equador seguiram subindo além da média, o gelo antártico resistiu às mudanças no polo. A rivalidade entre um Equador mais quente e uma Antártica ainda fria, só poderia impulsionar ainda mais a força dos ventos, e ao povo gaúcho restou colher as tempestades.  “O Rio Grande do Sul em um cenário de mudança climática vai ter um fortalecimento desta circulação”, alerta Aquino. “Comparativamente, este efeito deixará o Sul do Brasil mais quente, tempestuoso, com mais chuva, mas também  com mais estiagens”. https://www.ufrgs.br/humanista/2021/10/28/o-tempo-o-vento-o-sol-e-as-chuvas-40-anos-de-desastres-naturais-no-rio-grande-do-sul/ 28-10-2021.


Encerro a matéria com uma reflexão de Igor Travassos, coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil: “O enfrentamento à emergência climática deve ser prioridade para o poder público. As fortes chuvas que resultaram em dezenas de mortes e milhares de desabrigados e desalojados nesses últimos dias no Rio Grande do Sul, são resultado da falta de políticas efetivas de prevenção, adaptação às mudanças climáticas e resposta aos eventos extremos” (In: https://sul21.com.br/ 06-09-2023, 19h39). 

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