História e Historiografia do RS

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

COROGRAFIA BRASÍLICA

Capa da edição de 1817 do livro de Aires de Casal.

O padre Manuel Aires de Casal nasceu em 1754 em Pedrógão, Portugal. Permaneceu no Brasil até 1821 quando retornou para Portugal com a Família Real, vindo a falecer no mesmo ano. Ele exerceu o cargo de capelão da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e atuou como presbítero secular no Ceará.  É lembrado pela historiografia por ter sido o primeiro a imprimir a Carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento a relatar o descobrimento do Brasil em 1500. 
Aires de Casal é o autor do livro Corografia Brasílica, publicado em 1817 pela Imprensa Régia no Rio de Janeiro e dedicado a D. João VI. Este é o “primeiro livro científico impresso no Brasil” e o modelo de escrita fundamentou-se na Geografia Clássica, com longas descrições da hidrografia, relevo, populações indígenas (inseridos no capítulo sobre “zoologia”), divisão administrativa, aspectos históricos, enfim, uma miscelânea de informações.
A longevidade deste livro, que ja se aproxima dos dois séculos de sua publicação, constitui um fator de atração a mais para os leitores que no presente podem observar o vocabulário utilizado para descrever os atuais estados brasileiros. No Rio Grande do Sul as informações são ainda mais interessantes por inserirem a atual República Oriental do Uruguai como uma continuidade do território rio-grandense (na época, o atual Uruguai estava ocupado por tropas brasileiras, situação que perduraria até a sua independência em 1828).
Aires de Casal faz uma narração como se conhecesse os lugares relatados. Porém, ele foi um compilador de livros e documentos e não conheceu a maioria dos locais que faz referência. Além disso, um número elevado de erros cronológicos, espaciais e factuais são facilmente identificados. De qualquer forma, o livro é uma viagem ao que se conhecia do Brasil do início do século XIX e do olhar que se tinha do Rio Grande do Sul.
Foram compiladas alguns passagens relacionadas à Vila do Rio Grande e sua área de abrangência administrativa na década de 1810. Para se ter uma ideia desta área, há referências que englobam entre Jaguarão e a Lagoa do Peixe. Além da áspera abordagem referente à Rio Grande, se observa uma das mais antigas referências a areia e aos ‘papareias’: “nada se come sem uma porção deste sal”.
 AIRES DE CASAL
“As vilas principais são: Porto Alegre, São Pedro e Montevidéu. A medíocre, comerciante Vila de São Pedro, vantajosamente situada na extremidade duma língua de terra, que se prolonga entre o saco da Mangueira ao sul, e uma baía ao noroeste, tem uma igreja paroquial, dedicada ao Apóstolo, que lhe dá o nome, e duas ordens Terceiras, uma de S. Francisco, outra do Carmo. As casas são geralmente mesquinhas, e as ruas de areia finíssima, assim como o contorno, onde anda à vontade o vento, e chega a sepultar casas pequenas. Na estação das ventanias nada se come sem uma porção deste sal. Não é nem pode ser fortificada. Esta vila, que teve princípio obra de uma légua ao sudoeste no sítio do Estreito, foi mudada por Gomes Freire de Andrade entre os anos de 1747 e 1750; e capital até 1763. O calor é aqui intenso. Os gatos fogem dos ratos que são multiplicadíssimos e grandes; mas tem um formidável inimigo nos cães. Sobre a margem oriental do rio, em frente de São Pedro, está o considerável e florescente Arraial de São José, com uma ermida desta invocação. É o porto daquela vila. Em 1814, saíram dele 333 embarcações carregadas de trigo, courama, carne seca, queijos e outros objetos. Obra de 6 léguas ao sul de São Pedro está o Arraial de Povo Novo, ornado com uma ermida de Nossa Senhora das Necessidades: seus moradores são açoritas e lavradores.
Os habitadores da península formada pelo oceano e Lagoa dos Patos estão repartidos em três freguesias: a de Nossa Senhora da Conceição do Estreito, para os meridionais; a de S. Luiz de Mostardas, para os centrais; a de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, para os norteiros. Os que vivem ao poente da Lagoa dos Patos e da Mirim formam a Freguesia do Espírito Santo, junto à margem do Jaguarão; a de Nossa Senhora da Conceição de Piratini, pouco arredada deste rio; a de S. Francisco de Paula, perto do Rio de S. Gonçalo, e obra de 4 léguas acima da sua embocadura no sítio de Pelotas; a de Nossa Senhora da Conceição de Canguçu, na vizinhança do Rio Camaquã; e a de São Sebastião de Bagé, perto da origem do mesmo Camaquã. Todas estas freguesias são do Bispado do Rio de Janeiro.


        A Lagoa Mangueira, que tem 23 léguas de comprido, e quase sempre uma de largo, está prolongada no intervalo, que media entre a costa e a Lagoa Mirim, para onde deságua na extremidade setentrional por um esgotadouro chamado Arroio Taim. Ao norte dele está a Lagoa Cajuba, com 6 milhas de comprimento. Na península, que media entre a costa e a Lagoa dos Patos, e cuja largura é de 2 até 6 léguas, há grande número de lagoas ordinariamente pequenas, das quais umas deságuam para aquela outra, as mais para o Oceano. Entre as que se escoam para o poente, nota-se (na parte meridional) a das Capivaras, na qual deságua um arroio, de água pura e limpa, que rebenta com força admirável, e é a melhor fonte da península, que, todavia não é falta de águas potáveis. No lado oriental nota-se a Lagoa de Mostardas, mais conhecida pelo nome de Lagoa do Peixe, com 9 léguas de comprimento, pouca largura, 5 até 8 palmos de fundo, prolongada com o mar, para onde deságua por um sangradouro, que a natureza abre, e entope anualmente, pelo qual entra imensidade de várias espécies de pescado sendo a mais numerosa a denominada Miragaia com figura de bacalhau” (In: CASAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Editora da USP/Itatiaia, 1976). 

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