História e Historiografia do RS

quarta-feira, 12 de julho de 2017

UM ANTIGO ALMANAQUE

Um dos momentos mais prazerosos para o historiador é ao arriscar o palpite da leitura de um antigo livro, encontrar nele, esquecido pelo passar do tempo, informações sobre o tema da pesquisa que está realizando. A mais de 140 anos foi impresso, com objetivo comercial, um Almanaque que hoje podemos chamar de “antigo”. No tempo presente em que foi feito era atualíssimo e não “antigo” e não se ventilava que poderia ser uma fonte de informação relevante num futuro longínquo do século XXI.
Quem organizou nem sabia se haveria um futuro tão longínquo para a espécie humana ou para os rio-grandenses que haviam sobrevivido a Guerra do Paraguai que encerrara em 1870. A publicação é do ano de 1874 e se chamava “Almanak Administrativo, Comercial e Industrial Rio-Grandense” por Antonio de Azevedo Lima. Porto Alegre, Tip. Do Jornal do Comércio, Rua dos Andradas n. 223 a 227. O Almanaque faz um panorama geral do Rio Grande do Sul, mas se detém às informações de Porto Alegre na parte de prestação de serviços comerciais e dos anúncios.
A surpresa é na página 231 do volume II, quando se transforma em “Almanak da Cidade do Rio Grande do Sul” com informações da administração, Guarda Nacional, alfândega, irmandades, justiça, associações, sociedades comerciais e industriais etc. Ou seja, informações gerais sobre o funcionamento da cidade estão expressas e especialmente, demonstra a importância da cidade do Rio Grande no contexto provincial.
Alguns detalhes interessantes que podem ser garimpados no Almanak:  
            A Força Naval em Rio Grande era composta pelos navios de guerra: vapor Silveira, canhoneira Henrique Martins, canhoneira Greenhalgh, vapor fluminense e vapor Cachoeira.
            Estava instalado desde 1 de julho de 1872, um Gabinete de Leitura Luso-Brasileiro na Praça S. Pedro. O acervo era de 1.200 volumes.*Não é a Biblioteca Rio-Grandense!
            Os “phothographos” que atuavam na cidade eram: John King (rua Pedro II, n.63), Santiago de Castro (rua dos Príncipes, n. 126) e W.S. Bradley (rua Pedro II, n. 139).
            Pintores: Carlos Franco & Cia (rua Conde de Porto Alegre, n. 30) e João Esprick (rua Sete de Setembro, n. 82).
            Escultores: Fossati Giacomo Rossi (rua Pedro II, n. 106) e João Alfredo Pitrez (rua Paisandú, n. 106).
            Nada menos que 21 alfaiates disputavam a freguesia (num período em que a maioria das roupas era feitas sob medida); 6 lojas de modas e costureiras (5 na rua dos Príncipes – atual Bacelar ou “Calçadão” que já se destacava pela presença do comércio); 6 chapeleiros (cinco localizados na rua dos Príncipes), numa época em que o uso do chapéu era uma peça imprescindível do dia-a-dia; 5 lojas de “roupa feita”.
            Em 1874, a Rheingantz, começa a dar os primeiros passos para se tornar a maior indústria do Rio Grande do Sul. Porém, várias fábricas de menor porte já estavam estabelecidas na cidade buscando suprir as necessidades do consumo local. Havia duas fábricas de cerveja: Guilherme Juan, rua Pedro II, n. 121; João Papine, rua Paisandú, n.81. O Almanak também destaca fábricas de fundição, de fogos de artifícios, de sabão e velas, de charutos e cigarros,
A prestação de serviço era diversificada: botequins, bilhares, casas de pasto (restaurantes), cocheiras, hotéis, vidraceiros, relojoeiros, sapateiros, tamanqueiros tanoeiros, tipógrafos, confeitarias, padarias, ourives, marceneiros, litógrafos, ferreiros, barbeiros, cabeleireiros, armazéns de molhados, armazéns de ferro em barra, armazéns de ferragens, armazéns de secos e molhados etc.
Nove médicos atuavam na cidade e um deles tinha consultório na rua Paisandú, n. 53: Dr. Pio Angelo da Silva. Na Zallony atendia D. Ignacia Reis Ramos: parteira.
Estavam atuantes as Irmandades do Santíssimo Sacramento (ereta na Igreja Matriz de São Pedro e criada em 13 de dezembro de 1779); Irmandade de São Pedro (ereta na matriz e fundada com a do Santíssimo Sacramento); Irmandade de N. S. da Conceição; Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo (rua D. Pedro II em frente a 16 de Julho – o Almanak informa que a autorização para criação da ordem é de 26 de janeiro de 1777).

            O Almanaque nos permite estabelecer um panorama do comércio, indústria e prestação de serviço, que pode ser sintetizada na palavra mágica “trabalho” e que nos permite compreender como funcionava o cotidiano da cidade em algum momento do passado. 

           O comércio, a indústria e a prestação de serviços eram diversificados e devido à presença portuária, buscava trazer as inovações tecnológicas que surgiam na Europa e Estados Unidos. A disputa comercial deveria ser bastante acirrada e os jornais locais evidenciavam querelas e confrontos entre comerciantes. Vejamos algumas atividades realizadas no momento em que a grande indústria Rheingantz estava surgindo e provocaria modificações acentuadas no perfil da cidade que passaria a ser, gradualmente, uma cidade industrial/operária que empregava um grande número de trabalhadores.
A Praticagem da Barra era composta pelo Inspetor (Capitão de Fraga), escrivão, três primeiros práticos, três segundos práticos e quatro terceiros práticos.
A imprensa estava num bom momento com jornais diários atuantes e muitas vezes se confrontando em diatribes políticas ou pessoais. Diario do Rio Grande com tipografia na rua dos Príncipes esquina Zallony sendo proprietário Antonio Estevão; O Echo do Sul tinha a tipografia na Rua Paysandu n.140 e o proprietário era Pedro Bernardino de Moura; o jornal Commercial (rua 20 de Fevereiro n. 42) o proprietário era Francisco de Paula Cardoso; o Artista (rua dos Príncipes s.n.) tinha por proprietário Antonio da Cunha Silveira.
Na classificação de “Estabelecimentos Diversos” estão os “Botequins” que se localizavam na rua dos Príncipes e rua Paysandu; “Bilhares” na rua dos Príncipes e rua dos Andradas; “Casas de pasto” (restaurantes) no Beco do Afonso, no Mercado Público (dois estabelecimentos). Ou seja, a concentração se fazia na área central (não esqueçamos que ainda não havia urbanização na Cidade Nova e a linha de Trincheiras no Canalete ainda se fazia presente). Também se confirma que a tradição do Mercado Público possuir restaurantes é muito antiga e este conceito positivo se estendeu durante mais de cem anos.
Fundamental eram as três “Cocheiras” (duas na rua Uruguaiana e uma na Francisco Marques), afinal, o cavalo é o meio de transporte urbano, pois os bondes começariam a operar a partir de 1884 (dez anos depois) e os carros começariam a circular timidamente a partir de 1900.
Hotéis são uma tradição em uma cidade marítima que recebe muitos viajantes e imigrantes. Neste sentido havia quatro hotéis em funcionamento (dois na rua dos Príncipes/Bacelar-, um na Riachuelo e um hotel na rua Pedro II n.60/atual Marechal Floriano: Chermetti & Irmão. Será o atual Hotel Paris? Não esqueçamos que as viagens marítimas eram a única alternativa de deslocamento entre continentes e para o acesso pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre ou outros cidades (pouco mais de 24 horas durava a viagem pela Lagos dos Patos entre Rio Grande a capital da Província). Os cerca de 300 quilômetros terrestres, levariam vários dias para serem cobertos de carroça (isto sendo muito otimista!).      
            Outros serviços estavam disponíveis ao “grande público” que não chegava a 20.000 pessoas (menos de 10% da população atual). “Pintores”, “Relojoeiros”, “Sapateiros” (essenciais para o concerto ou confecção de sapatos): havia 17 casas comerciais de sapateiros! Três "Cortidores” estavam estabelecidos: João Flandin & Cia, rua General Osório n.42; Julio Bedot, rua do Bomfim e José Maria Galcano, rua dos Andradas n.104 e 106 (a presença de mercúrio no solo do centro da cidade pode, historicamente, estar relacionada com a presença destes curtumes que usavam este produto químico para amaciar os couros – não podemos esquecer a importância dos couros para a fabricação de chapéus.
            Dois “Ourives” estavam estabelecidos na rua Pedro II e, mostrando a importância do comércio, haviam três estabelecimentos de “Lytografias” (imprimir sobre papel, por meio de prensa, um escrito ou desenho executado com tinta sobre uma superfície metálica ou calcária). 
            Havia “Lojas de Calçado Estrangeiro” e “Lojas de Calçado do país”. Não poderia faltar uma loja especializada em lampiões objeto essencial para enfrentar a escuridão das noites (apesar de restrita parte da área central receber iluminação a gás desde o final de 1871 – obras de engenheiros ingleses).
            Vinte e um “Escritórios Comerciais” evidenciam a dinâmica comercial com nomes de destaque como Claussen, Corrêa Leite, Eufrasio Araujo, Higino Durão, Tigre, Wigg etc. Entre tantas outras atividades, surgem dezenas de endereços dos famosos e essências “Armazéns de Secos e Molhados”.   Já o comércio que exigia altos capitais é denominado na época de “Negociantes” (carvão de pedra, farinha,  fazendas, louça, sal, madeiras, ferragens etc – comércio de exportação e importação).

Finalizando, apesar de não esgotar o Almanak, os “Professores Particulares” ofereciam os seus conhecimentos para promover a aprendizagem: uma professora de canto, dezoito professores (as) de piano, três de desenho, seis professores de Francês, um de Inglês, três de Português, três de História e quatro de Geografia.   

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