História e Historiografia do RS

sábado, 15 de julho de 2017

RESISTÊNCIA ESCRAVA NA QUITÉRIA

A escravidão é um tema que a historiografia tradicional enfatizou mais a ‘acomodação’ enquanto a historiografia dos últimos 50 anos tem enfatizado a ‘resistência’. Um interessante artigo de Gabriel Aladrén (publicado na Revista ‘História Viva’ de junho último), contextualiza a busca de alforria por escravos que combateram em guerras de fronteira envolvendo Brasil, Uruguai e Argentina. 
A partir da vinda de D. João ao Brasil em 1808, a escravidão se institucionaliza de forma ainda mais contundente. Já no Uruguai e Argentina, os programas de independência avançam na emancipação dos escravos, tanto que a partir de 1813, os escravos de países estrangeiros que para ali fugissem, seriam considerados livres se ingressassem nas Províncias Unidas do Rio da Prata. Também seria concedida liberdade aos escravos que se alistassem nos exércitos platinos. Uma forte provocação ao escravismo luso-brasileiro e uma tentadora atração para fugas dos escravos do Rio Grande do Sul. 
Neste artigo, o autor analisou as trajetórias do angolano Antonio Angria e de Manoel Antonio da Cruz, este último, preso na Quitéria, será enfatizado. Segundo ele, as autoridades judiciárias se preocupavam com os libertos, sobretudo por receio de que suas ligações com escravos se tornassem potencialmente perigosas para a ordem social. É o caso de Manoel Antonio da Cruz!
Aladrén narra que em “1825 os orientais iniciaram um movimento para repelir a ocupação brasileira. Esse cenário alarmou as autoridades políticas rio-grandenses, e qualquer tipo de subversão interna, como fugas, quilombos e revoltas de escravos, era visto como potencialmente perigoso e favorável ao inimigo. Na cidade de Rio Grande, a proximidade com a fronteira acirrava ainda mais os ânimos. Eram comuns as acusações de pessoas que estariam incitando escravos a organizarem revoltas ou a fugirem para se alistar no exército platino. Foi essa a denúncia contra Manoel Antonio da Cruz. Preso em 1825 no distrito de Quitéria, em Rio Grande, ele teria seduzido escravos para seguirem o partido inimigo. Manoel era um pardo, ex-escravo, natural de Rio Grande, casado, 48 anos de idade. O interessante é que ele era sargento da Companhia dos Homens Pardos. As companhias milicianas faziam parte do exército auxiliar e eram divididas, desde o período colonial, em companhias de homens brancos, pardos e pretos. Nas primeiras décadas do século XIX, as companhias de homens de cor cresceram e muitos pretos e pardos tiveram oportunidades de se alistar no exército brasileiro. Alguns chegaram a assumir postos de oficiais, trilhando um caminho de ascensão social.
Manoel, como miliciano, não recebia soldo regular, de modo que precisava recorrer a outros expedientes para assegurar sua sobrevivência. Ele disse que vivia de seu trabalho e era lavrador. Uma testemunha afirmou que Manoel costumava roubar gado e cavalos. O comandante interino, que o remeteu à cadeia, ampliou as acusações. Segundo ele, Manoel andava pelas casas do distrito conversando secretamente com os escravos, “seduzindo a escravatura a favor do partido inimigo (…) contra a causa preciosa do majestoso Império do Brasil”. Além disso, disse que “este mesmo pardo conserva em si todas as qualidades capazes de grande revolucionário, e nunca perde ocasião de haver a si quanto pode do suor alheio, e os vizinhos todos estão prontos a fazer um nós abaixo assinados a fim de o dito não existir nesta Província, pois no todo é inquietador dos Povos, no lugar onde reside”.
As acusações não foram provadas e, depois de algum tempo na prisão, Manoel foi libertado. O episódio demonstra como os conflitos políticos e militares do período das independências no Rio da Prata e no Brasil trouxeram ao mesmo tempo instabilidade e novas possibilidades de resistência e ascensão. Os escravos e os libertos enfrentaram a nova realidade acionando diversas estratégias. As fugas, a resistência cotidiana e até mesmo a colaboração com seus senhores permitiu-lhes conquistar a liberdade ou obter melhores condições de trabalho e sobrevivência. Como é comum nos tempos de incerteza, as guerras e os conflitos militares podiam resultar em tragédia ou triunfo para a vida dos negros escravizados e livres na fronteira sul do Brasil”, conclui Aladrén.

         

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