O
tradicional “Teatro dos Vampiros” pela primeira vez estava se apresentando em
Rio Grande, tendo feito a sua última escala no Porto de Laguna. Foi apenas um
espetáculo, pois estavam de passagem para a turnê em Buenos Aires. O líder do
grupo se chamava Armand e vinha de Paris, onde fazia um grande sucesso numa
cidade que respirava muitas trevas antes de virar o cartão-postal da cidade luz
da Belle Époque. As vielas estreitas
e escuras escondiam muitos segredos de desaparecimentos de inúmeros moradores
que dias depois apareciam boiando no Rio Sena. A banalização da morte em tempos
de alta mortalidade e de inúmeros suicídios, somada a decomposição avançada,
fazia com que os sinais óbvios da drenagem de sangue e de orifícios sutis no
pescoço não fossem percebidos. Os comentários de que eles moravam nas
catacumbas de Paris, junto a um antigo cemitério, também não chamou a atenção
dos parisienses.
Apesar
de toda literatura vampírica que passou a assolar a Europa Ocidental desde a
década de 1730, ninguém se importou que os atores do “Teatro dos Vampiros” eram
oriundos da região da Romênia, região tradicional de relatos do vampiro eslavo.
Na França, acreditava-se estar num mundo moderno, de intensa Revolução
Industrial e deslocamento de população camponesa para a periferia de Paris,
passando despercebido os detalhes mais óbvios da epidemia vampírica reinante. A
população ainda estava mergulhada na voracidade dos antigos problemas das
doenças agora catalisadas para os espaços das vielas estreitas cada vez mais
saturadas pelos antigos camponeses expulsos de suas terras. A barbárie que
assolava o proletariado e assustava a aristocracia/burguesia pelo nível de
violência social, pesava mais do que as antigas lendas. Afinal, o consumo de
gim era tão alto e a sífilis devorava os corpos com uma voracidade tal que uma
horda de vampiros não passava de um parque de diversões ou um espetáculo
mambembe a mais. Os parisienses achavam divertido e assustador assistir a
“simulação” da ação sanguinária durante as apresentações! Shows de aberrações eram
comuns no século XIX, com pessoas ou animais deformados que chamavam a atenção
do público embrutecido pelas difíceis condições de vida, pelas guerras
contínuas ou pela restrita assimilação dos princípios iluministas das luzes e
da razão. Construir a fraternidade num mundo de brutalidade já era um grande
desafio que andava lado a lado com todo um passado de bruxarias, violências e
mortos vivos que vagavam pelas cidades européias. As fronteiras iam se tornando
cada vez mais abertas à circulação de migrantes frente à expansão do
capitalismo. O planeta vai se tornando pequeno e interligado por uma grande
rede de rotas de navegação.
Uma
destas rotas traz o “Teatro dos Vampiros” a Rio Grande e a única apresentação
ocorrida naquela noite do dia 3 de julho de 1884 foi inesquecível! Noite fria e
de vento cortante, Teatro Politeama lotado e grande movimentação de pessoas em
sua frente, na atual Praça Xavier Ferreira (no local do prédio da Câmara do
Comércio desde 1941). Continuamente chegavam charretes e em frente ao teatro os
lampiões iluminavam sua fachada de madeira e as luzes projetavam imagens
distorcidas nas águas do cais do Porto Velho que ficava ao fundo.
Os
atores não foram vistos durante o dia, saindo do navio após o Sol se pôr e
foram direto para o teatro. O espetáculo teve início e a encenação girava em
torno de personagens masculinos e femininos, recitarem termos demoníacos e
frases que enfatizavam uma psique envolta em sombras e delírios. Contavam
histórias de mortos que retornavam de suas covas alguns dias depois de serem
enterrados e acabavam provocando uma estranha doença em que as pessoas iam
enfraquecendo, se tornando pálidas e emagreciam até falecerem. Também contavam histórias de vilas européias
em que nenhuma pessoa sobreviveu após receberem a visita de um grupo mambembe
(o “Circo dos Vampiros”) cujos atores teriam transmitido uma estranha doença. O
ponto alto foi quando dois intérpretes, trajados com capas pretas e máscaras,
arrastaram uma jovem (que embarcou no Porto de Laguna) que gritava pedindo
socorro, num nível de realismo que deixa a platéia apreensiva e chocada com a
parcial nudez da moça que chocou os presentes e que fez dilatar as pupilas dos
homens e constranger as mulheres. Neste tempo, os homens freqüentavam os
espaços públicos ou lúdicos armados, o que era comum também no teatro. Um
cidadão esbraveja e saca o seu revólver ameaçando os atores e exigindo que
larguem a aflita jovem. Uma mulher com um manto negro e maquiagem de morta
viva, saída da plateia, segura a mão do homem e diz que ele vai estragar a
representação da peça e que todos eram apenas intérpretes. A gritaria no
Politeama se transforma em silêncio e a peça é retomada com vigor redobrado e
os gritos da jovem se tornam ainda mais dilacerantes e reais, que fariam até
Anne Rice se arrepiar. Assim como parecia real o sangue que começou a escorrer
do seu pescoço quando um dos personagens, o líder Armand, lhe beija
agressivamente o pescoço e ela desmaia. Na sequência, com avidez, todos os
integrantes se lançam ao corpo da mulher e parecem sugar o seu sangue como se
tivessem pressa para bebê-lo ainda quente. A cortina se fecha abruptamente! A
plateia por instantes fica estagnada nas cadeiras e os atores não mais
aparecem! O responsável pelo teatro, o Sr. Albano, avisa num berro que rompe a
estática: o espetáculo acabou!
Antes do Sol nascer no horizonte o navio partiu para
Buenos Aires e o “Teatro dos Vampiros” ficaria no esquecimento não fosse o
desaparecimento de uma jovem de 18 anos, que fora vista pela última vez
caminhando antes da apresentação numa área escura da Praça Xavier Ferreira.
Será que ela teria se juntado voluntariamente ao grupo para a apresentação em
Buenos Aires?
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