História e Historiografia do RS

terça-feira, 26 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - SEIDLER

SEIDLER, Carl. DEZ ANOS NO BRASIL. Tradução e notas do General Bertoldo Klinger. Prefácio e notas do Coronel F. de Paula Cidade. Doação de ambos à Biblioteca Riograndense, da cidade do Rio Grande. Livraria Martins, São Paulo. Biblioteca Historica Brasileira. Direção de Rubens Borba de Moraes VIII. 1941
.https://www.veranunesleiloes.com.br/peca.asp?ID=3051373

*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 

Seidler

O suíço-alemão Carl Seidler foi contratado pelo Império Brasileiro para lutar no Exército Imperial na Campanha Cisplatina, elaborando depoimentos dos acontecimentos militares e sociais vivenciados no Brasil . “Dado às aventuras amorosas, que às vezes relata como de terceiros, traça páginas verdadeiramente interessantes, tais a agudeza da observação e a propriedade no confronto”.[1]
Os costumes sociais rio-grandenses das primeiras décadas do século XIX foram observados durante sua permanência em Rio Grande, Pelotas, Taquari, Porto Alegre, São Leopoldo, Jaguarão e Piratini. Para o historiador Paula Cidade, o livro encerra “aspectos pitorescos de nossa vida civil e militar” sendo escrito entre 1833 e 1834, registrando “impressões de um observador de condições modestas, que escreve o que sente e o que sentem os que o cercam, que diz exatamente o que anda na boca do povo, embora venha muitas vezes, por esse modo, a se afastar da verdade”.[2]
Seidler foi um dos europeus que vieram para o Brasil fazer fortuna, a partir do agenciador de emigrantes de má reputação Jorge Antônio Schäffer, durante o I Reinado. Foi um dos desiludidos pelas falsas promessas de enriquecimento fácil. Para Rubens Borba de Moraes, “o aventureiro alemão, vindo ao Brasil com intuito de fazer fortuna rápida, aqui chegando viu seus sonhos desfeitos. De volta à terra natal escreveu um livro cheio de animosidades sobre o país que não o tornara milionário”.[3]
O aventureiro partiu do Rio de Janeiro em 1827 vindo para a cidade do Rio Grande com um comboio de dezesseis navios mercantes escoltados por uma fragata e um bergantim. Realizou uma série de observações sobre as atividades sociais e econômicas nas estâncias do sul da Província. Segundo ele, nessas estâncias às vezes matavam em um dia 400 a 500 bois, cujos couros e chifres eram escoados para Rio Grande, de onde eram vendidos para a América do Norte, que em geral os recolocava no Brasil em artigos manufaturados. A carne era separada dos ossos em pedaços de 30 a 40 libras, sendo salgada e exposta ao sol para secar; o sebo e o tutano eram amassados em tinas de madeira e expedidos em bexigas para o Rio de Janeiro.
Ao aproximar-se para desembarque no Rio Grande, Seidler afirmou que “a primeira vista desta costa está longe de ser tão bonita como a do Rio de Janeiro” pois em lugar dos penhascos e serras “que envolvem a capital e seu porto como uma cintura encantadora, aqui se acha areia e grama”. A sensação é de ter chegado a outro país e outro povo. Chamou sua atenção que a “areia que envolve Rio Grande como um grande manto de pó, triste e sombrio, estende-se quatro léguas para o interior, onde então repentinamente a província quase toda se transmuda numa única enorme pastagem. A superfície toda parece uma grande serpente, sem grandes montes mas também sem planícies”.
Seidler ressalta o papel das atividades campeiras e a hospitalidade oferecida aos viajantes pelos proprietários das estâncias. Essa hospitalidade “é a maior de suas virtudes; sem ela seriam certamente bárbaros”. Ao contrário da cor amarelo pálida dos habitantes do Rio de Janeiro, na Província de São Pedro do Sul “encontram-se em geral tipos altos, bonitos e fortes, e notadamente as senhoras têm às vezes a tez tão branca que muitas européias”. Até a fisionomia “não tem a malícia e malignidade como é comum nas regiões setentrionais do Brasil; é franca, aberta, sem falsidade nem reserva”. O caráter dessa população é “em geral fleumático, com ligeiro toque sangüíneo”. Porém, não devem ser irritados sem motivo porque “nunca perdoam e às vezes se vingam terrivelmente”. O militar alemão observou que a carne do boi é quase o alimento exclusivo destes homens, os quais “quase não conhecem legumes, salvo certamente o feijão preto, que aliás é bem barato”. O pão só é encontrado nas grandes cidades como Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo, “no campo só é conhecido, a bem dizer, de nome”.[4]
As dificuldades do calado do porto do Rio Grande foram destacadas:
Nas cidades, sobretudo no Rio Grande, onde aportamos e que é o único porto marítimo da província, encontra-se melhor modo de vida, conhecem-se regularmente as comidas européias e sua preparação. Sem contar os muitos navios norte-americanos sempre aqui ancorados principalmente holandeses, ingleses e franceses vêm ao Rio Grande e abastecem a cidade, e, através dela, a província, em produtos europeus; hamburgueses, e de um modo geral, alemães, são raros, pois que tão longa viagem só costuma ser feita em grandes navios de três mastros e estes não podem entrar no porto, por causa das areias tocadas pelo vento, que vão cada vez mais reduzindo a profundidade de água.[5]
O porto referido é o do Rio Grande do Norte (São José do Norte) pois na cidade do Rio Grande do Sul, (Rio Grande) muito maior, onde porém a água é tão rasa que nem os menores navios podem ir ancorar. A maioria dos comerciantes estabelecidos no Norte moram em Rio Grande devido a areia e a poeira. Da estadia de Seidler no Norte ficou o registro da areia, pois “tudo o que se come range nos dentes” e “tudo torna a moradia tão desagradável que todo aquele que pode prefere residir na cidadezinha fronteira” apesar de “Rio Grande do Norte como verdadeira praça comercial, seja muito mais importante”.[6]
Integrando o 27º Batalhão de Caçadores, Seidler recebe ordens de marchar para São Francisco de Paula (Pelotas) um lugar distante 7 léguas do Rio Grande. Pelotas mantém intenso comércio com Rio Grande “de onde vem constantemente inúmeros artigos e produtos de toda espécie”, geralmente trocados por couro de boi. Conforme Seidler, em Pelotas e Rio Grande havia muitos europeus, que possuem importantes estabelecimentos comerciais e que “certamente pela influência do seu dinheiro e de sua cultura tem contribuído consideravelmente para que os habitantes tenham mais civilização e mais gosto pela vida social e mais trato amigável, do que nas outras regiões”.[7]
Participante, segundo ele, da Batalha do Passo do Rosário, o militar alemão não poupa críticas às ações e estratégias luso-brasileiras no confronto militar da Cisplatina. Nesse conflito, “apesar da formidável desordem, que logo no começo da batalha se fez notar no nosso exército, os soldados alemães se conservaram sempre calmos e, não obstante todos os esforços do inimigo, não se deixaram abalar”.[8] Ao longo do livro, a superioridade do soldado e do colono alemão que migrou para o Brasil é amplamente destacada. Invencionices, exageros e informações não verídicas a parte, muitas observações sobre a psico-sociabilidade dos habitantes do Rio Grande e região da campanha, com ênfase na figura do estancieiro-pecuarista, são interessantes para reconstituir as relações sociais na Província. Suas aventuras amorosas permitem resgatar um pouco dos costumes do século passado, como é o caso da narração sobre uma suposta experiência contada por um amigo (mas possivelmente vivida por ele próprio) em que são relacionados há hospitalidade do estancieiro e a preocupação em não apresentar às mulheres àqueles que não tivessem intimidade com a família visitada.
É a história de um jovem oficial que ficou três dias na casa de um fazendeiro “sem que lograsse ver nenhuma das três filhas da casa, nem de longe, e tinham fama de bonitas e amáveis”. As filhas tinham ordens de não aparecer sequer na janela para não serem vistas, porém “nas mulheres a curiosidade é sempre mais forte que a obediência”. As três moças reclusas souberam “por uma das suas negras que o estrangeiro era muito jovem, muito bonito e muito amável e que usava brilhante uniforme”.  O efeito irresistível da farda levou as moças a um encontro sorrateiro onde o galante oficial ousou “beijar a mão das três e logo depois pedir-lhes um abraço, que certamente não recusariam. Sem dúvida a brasileira não admite facilmente um beijo na boca, a não ser que esteja disposta a concessões maiores” enquanto que um abraço lhe parece “a coisa mais inocente e decente do mundo”. Os encontros repetiram-se por mais uma semana, entre os abraços das filhas e a hospitalidade do pai, até que o militar partiu em meio ao pranto das moças, que segundo o garboso militar, era passageiro: “na mulher brasileira a fidelidade não dura mais que o gozo; só a presença pode reclamar amor, só o momento dá felicidade”.[9]
       Os comentários de Seidler são um tanto genéricos pois relaciona a Província com o Brasil, dificultando depreender as características e diferenciações dos locais onde esteve em suas marchas militares e envolvimentos afetivos.  A passagem por Rio Grande não deve ter sido superior a dois meses, pois recebeu ordens para embarcar do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Sul em novembro de 1826 e em fevereiro de 1827, já participou da Batalha do Passo do Rosário, rumando posteriormente para Porto Alegre. Importante, apesar dos breves comentários feitos sobre a cidade, é a sua preocupação em relatar suas vivências de maneira não oficiosa e tratando de temas ligados ao convívio social lúdico e não formal da população.


[1] BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1976, p. 1251. Abeillard Barreto não traz a data e local de nascimento e morte de Carl Seidler.
[2] CIDADE, F. de Paula (prefácio e notas) In: SEIDLER, Carl. Dez Anos no Brasil. 3ª ed., São Paulo - Martins; Brasília - INL/MEC; 1976, p. 15.  A primeira edição alemã do livro foi publicado em Leipzig em 1835 com o título Zehn  Jahre in Brasilien.
[3]  MORAES, Rubens Borba de. In: SEIDLER. p. 5.
[4] SEIDLER. p.92.
[5] SEIDLER. p.93.
[6] SEIDLER. p.93
[7] SEIDLER. p. 94.
[8] SEIDLER. p.97.  A Batalha do Passo do Rosário ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1827 e foi o enfrentamento mais importante da Guerra Cisplatina que perdurou de 1825, quando tropas uruguaias e argentinas iniciam a libertação da Banda Oriental anexada por D. João VI ao Brasil (1820), até a independência do Uruguai em 1828.
[9] SEIDLER. p.91.

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