História e Historiografia do RS

terça-feira, 26 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - AMBAUER


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 

 Ambauer
Porto Velho do Rio Grande em 1870. Ambauer presencial as obras de concreto do Porto
que tiveram início em 1872.
Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.  

          O italiano Enrico Ambauer (1840-1899), que assinava seus escritos como Henrique Schutel Ambauer, atuou como professor de música e residiu por vários anos no Rio Grande do Sul. Publicou A Província do Rio Grande do Sul: descrição e viagens, uma exposição sumária, abrangendo quase tão somente a zona litorânea do Rio Grande do Sul, num quadro em que a parte sul dessa zona era conhecida do autor, que teve por longos anos uma casa de música na cidade do Rio Grande. No que tange à parte norte, valeu-se de escritos anteriores, dos quais inclusive transcreveu longos trechos. Quando de sua presença na cidade do Rio Grande, chegou a organizar um projeto de colonização do município, o qual foi publicado em 1883[1].
         A primeira perspectiva traçada pelo autor sobre o Rio Grande constituiu um brevíssimo histórico e uma descrição geográfica da localidade, com destaque para o acesso, a hidrografia, o relevo e o conjunto de ilhas no entorno da urbe. Os riscos da costa gaúcha estão presentes na narrativa do escritor que descrevia que, entre o 29º e o 33º austral e 49º e 53º ocidental estava uma costa baixa, árida, monótona e triste, a qual o cauteloso navegante evitava, se não se dirigia ao único Porto acessível da região. Sobre esta faixa litorânea, relatava que as correntezas, os ventos, os descuidos e as espertezas tinham dado a essa costa e ao seu Porto uma reputação pouco lisonjeira, num quadro em que, todas essas circunstâncias promoviam a demora do desenvolvimento da navegação de alto bordo para a Província, impedindo assim a ela tomar rapidamente o grau de adiantamento que poderia atingir[2].
A respeito do acesso à comunidade portuária, Ambauer destacava que o Rio Grande era o único que permitia a entrada de navios que não demandassem mais de 18 palmos, e isso nem sempre, sendo mais regular de 14 a 15. Explicava que, dificultavam a passagem pela da Barra dois bancos que lhe obstruíam a entrada, formando-se entre eles um canal mutável segundo a direção mais longa dos ventos e correntezas. Narrava ainda que a massa das águas que escoava pela Barra do Rio Grande seria mais que suficiente para ter um canal de franca navegação, se ela não tivesse perdido o declive nos dois lagos internos e na bacia que os recebia, de maneira que o nivelamento, que formava esse espraiamento das águas fluviais, paralisava um tanto o seu curso e apenas o escoamento com diminuta força permitia a conservação desse pequeno Canal da Barra. Refletindo uma das maiores aspirações rio-grandinas, o escritor explicava que era de desejar que, para o futuro, se encontrasse meio de aumentar a profundidade do canal, para que a Província do Rio Grande pudesse conseguir a afluência de uma navegação mais desenvolvida, enriquecendo-se na grande permuta internacional. O serviço de praticagem, a sinalização náutica, as embarcações de apoio e os pontos de desembarque também se faziam presentes na narrativa do italiano[3].
Com referência à organização econômica e urbana, o autor destacava que, comercialmente a cidade do Rio Grande era considerada o interposto geral, sendo o ponto no qual convergem tanto o comércio exterior como o interior. Nesse quadro, relatava que a parte mais importante da cidade era o seu litoral, em linha quase reta, de leste a oeste, no qual duas linhas de embarcações corriam na mesma direção, deixando entre si um canal de poucas braças de largura, por onde transitavam as embarcações que demandavam o ancoradouro. Fazia referência ainda ao fato de que as casas que margeavam o litoral, como eram quase todas de sobrado de um e dois andares, algumas elegantes com graciosos mirantes, davam agradável aspecto ao panorama visto do mar, seguindo-se, porém, algumas ruas paralelas e outras transversais, que não valeriam a primeira, havendo apenas algumas praças e casas particulares de aparência regular. Descrevia também que a cidade possuía uma alfândega e um excelente cais para o serviço da mesma, tendo uma praça de comércio, onde funcionava igualmente o correio, casa da câmara, mercado, um enorme edifício – hospital de caridade – que, segundo sua concepção, poderia ser menor e ter mais acomodações. As praças, as chácaras, o incômodo com as areias e o abastecimento de água são outros temas abordados por Ambauer, para quem era fora de dúvida que a cidade do Rio Grande viria a ser uma das mais importantes das do Sul da América, quando um caminho de ferro a ligasse com a fronteira da Província[4].
O escritor fazia alusão a uma certa rivalidade existente entre os habitantes da cidade do Rio Grande e os de Pelotas, a qual, segundo ele, não tinha razão de ser, ligadas como estavam ambas pelos interesses mútuos, que, unindo o capital do comércio do Rio Grande ao produto especial da indústria especial de Pelotas, facilitava os meios de riqueza e o bem-estar dos moradores das duas cidades[5]. De acordo com essa perspectiva o autor apontava para o caráter complementar daquelas que eram duas das principais comunidades sul-rio-grandenses de então, quer seja, a produção pecuário-charqueadora concentrada no contexto pelotense e o porto de escoamento dessa “indústria”, representado pelo Rio Grande.
A obra de Ambauer, mesclando conhecimentos históricos e geográficos, bem como narrativas fruto de seu próprio testemunho ou da utilização da literatura disponível, abrangia um amplo conjunto de localidades gaúchas, vislumbrando praticamente todas as regiões da Província naquele final de século XIX. O autor encaminhou seus escritos ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para ser submetido à revisão e apreciação no intento de ser incluso na revista da instituição. Ele pedia atenção ao seu “insignificante trabalho”, que estaria a carecer de estudos mais profundos e de gramática e, caso não fosse incluído na edição em vista, solicitava a devolução de seu manuscrito, visando publicá-lo em italiano[6]. O breve texto acabaria por ser publicado na Revista do Instituto, servindo à época para divulgação de algumas facetas da vida rio-grandense de então. As apreciações de Enrico (ou Henrique Schutel) Ambauer sobre a cidade do Rio Grande refletiam a perspectiva de um morador que permaneceu largo tempo junto à comuna, prestando um testemunho in loco que traz em si o significado do registro histórico da urbe portuária numa época de amplas transformações como o foi a virada do século XIX para a seguinte centúria. 



[1] BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura. 1973. v. 1. p. 37-38.
[2] AMBAUER, Henrique Schutel. A Província do Rio Grande do Sul: descrição e viagens. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.  t. 51, 2ª parte. Rio de Janeiro: IHGB, 1888. p. 25-26.
[3] AMBAUER. p. 27-32.
[4] AMBAUER. p. 32-33.
[5] AMBAUER. p. 45.
[6] AMBAUER. p. 71-72.

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